Texto de Estréia – A Reforma Ortográfica – Brasil

Estimado amigo leitor e queridíssima amiga dona leitora; este é o primeiro texto que publico neste blogue e não sei como fazer boa estréia aos possíveis seguidores desta página. Caso a minha escrita fosse mais concisa e de grande estilo lingüístico, poderia, com muita elegância e domínio das palavras, falar sobre a morte do ator americano Patrick Swayze, falecido esta semana, ou ainda comentar a campanha vexatória do Fluminense no Brasileirão (ê tricolor!) ou maravilhosa campanha da Seleção Argentina nas Eliminatórias para a Copa da África do Sul (parabéns Maradona, não saia nunca mais deste ofício!), e mais uma infinidade de temas e assuntos que trariam prazer aos que lêem e, talvez, se dessem até ao trabalho de comentar este texto.

Entretanto, resolvi intrometer o meu nariz na reforma, ou acomodação, da ortografia entre os paises de língua lusitana. O motivo é simples: Neste blogue há um livro publicado, O Boêmio, de minha inócua autoria, sob as regras gramaticais antigas.

Como eu disse acima, não sou grande lingüista e não domino completamente todas as normas gramaticais, deste modo, portanto, há um motivo para a falta de apuro da gramática do meu livro; e, afinal, também quantas regras não servem apenas para perfilarmos como cordeirinhos adestrados ao rebanho desta nossa sociedade... Demais, o leitor já deve ter imaginado, a preguiça para corrigir tal desígnio gramatical poda-me.

Também não haverá dificuldade de ortografia para quem quiser ladear as ambíguas páginas do Boêmio, compreender-se-á facilmente o idioma ali grafado; claro, enredo e os pensamentos são outros quinhentos; aí a tarefa para a devida compreensão da obra pode ser muito mais árdua. Mas não reclame; já lhe disse e lhe repito: não sou grande estilista, e sequer escritor consagrado. Portanto, peço-lhe que se esforce na compreensão de minha obra; com a licença de denominá-la assim.

Mas tornando ao tema, caros leitores, acontece que o choque em torno da afirmação de um nacionalismo lingüístico no Brasil, que vem de outrora, tiveram nas discussões a respeito da ortografia da língua portuguesa uma importante etapa.

O cerne da discussão fica a cargo da necessidade de se estabelecer um sistema ortográfico condizente com as peculiaridades da realidade lingüística brasileira, para que, assim, se pudesse resolver a um só tempo o antigo problema idiomático que se impôs ao país e o anseio por uma independência lingüística que acabava tendo implicações indiretas no nosso caráter nacional.

Norteadas a princípio por um frágil sentido de nacionalidade, estas discussões ganharam corpo durante o século XIX e acabaram desaguando nas indefectíveis querelas ortográficas, quando então o sentido de independência idiomática adquire, inclusive, foros de legalidade, com a publicação de decretos e a realização de acordos ortográficos que davam a tônica dos debates. Com efeito, estabelecer uma unificação ortográfica da língua portuguesa foi, desde sempre, uma das principais preocupações de nossos gramáticos, quase que uma condição prévia de todo o processo de normatização lingüística. Trata-se, certamente, de uma necessidade nascida da observação de um fato inegável: a grande quantidade de variantes gráficas que ocorriam mesmo nos registros cultos da língua, como já ressaltamos anteriormente. No século XX, principalmente, com o crescimento do mercado editorial, com a incrementação das relações internacionais e, sobretudo, com a intensificação das trocas literárias entre Brasil e Portugal, esse fato tornou-se insustentável, ocasionando todo um processo que objetivava estabelecer a unificação ortográfica entre as duas principais nações falantes do português. Na verdade, grande parte dos autores brasileiros representativos da época escrevia pela ortografia corrente em Portugal.

As primeiras discórdias - tanto entre brasileiros e portugueses quanto entre os próprios brasileiros - já começam com o século que se inaugura. Nosso primeiro projeto de reforma ortográfica nasce em 1907, com a proposta da Academia Brasileira de Letras. Esta reforma, que foi complementada em 1912, parece ter recebido mais críticas do que aceitação, o que é compreensível, já que se tratava - de certo modo - de uma atitude inovadora e polêmica.

Contudo, a reforma mais polêmica dessa primeira década não seria realizada no Brasil, mas em Portugal: em 1911. De fato, o espírito que regeu esta reforma foi o da simplificação. Com efeito, optou-se por uma reforma que tinha como modelo alguns achados lingüísticos presentes nas ortografias italiana e espanhola, segundo os autores do acordo, muito mais simples e racional. Como a de 1907/1912, esta foi também uma reforma polêmica e, mais do que aquela, parece ter mexido com os brios nacionalistas dos brasileiros, a começar pela falta de qualquer referência à situação da ortografia no Brasil, o que já revela o sentido de unilateralidade com que se concebeu o projeto. Assim, é possível que este descaso tenha atingido nossas suscetibilidades nacionais, senão naquele exato instante, com certeza posteriormente, quando uma série de obras mais ou menos panfletárias em favor dos “brasileirismos” e das características de nosso falar foram escritas.

Curiosamente, a despeito das inúmeras críticas que a reforma portuguesa recebera no Brasil, sua aceitação acabou sendo até maior do que aquela anteriormente realizada pelos acadêmicos brasileiros, pelo menos nos primeiros anos subseqüentes à mesma.

A década de 1920 é de particular importância para a afirmação do nacionalismo lingüístico brasileiro. Essa afirmação nacionalista dava-se em geral pela via da negação do estatuto lusitano da língua portuguesa, o que concedia ao nacionalismo lingüístico uma natureza claramente anti-lusitana. Por esta época, impera nos salões o hábito pedante de se falar francês, num galicismo exacerbado e sem identidade.

De qualquer maneira, falar sobre a importância dos modernistas para a afirmação de uma cultura brasileira e para a consolidação de especificidades lingüísticas nacionais torna-se algo ordinário.

Com efeito, o primeiro projeto de reforma ortográfica que tivera aceitação e concordância de ambas as partes, com os dois países deliberando em posição de igualdade sobre os pontos principais das mudanças só aparecia duas décadas depois, isto é, em 1931, data do célebre Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro (30.04.1931), organizado pela Academia Brasileira de Letras e Academia de Ciências de Lisboa com vistas à unificação ortográfica da língua portuguesa.

Trata-se, contudo, de um acordo não totalmente isento de posicionamentos nacionalistas, já que se propunha a uma espécie de unificação total dos dois registros gráficos, abolindo toda e qualquer divergência nesse campo, propósito evidentemente inviável e utópico, como aliás seria reconhecido mais de meio século depois.

Em 1934, o então governo eleito de Getúlio Vargas promulga nossa terceira Constituição Federal, cujo Artigo 26 revoga os decretos anteriores (20.108 e 23.028), adotando o sistema ortográfico anterior ao acordo assinado pelas duas nações. Trata-se, evidentemente, de uma atitude tipicamente nacionalista, ideologia que, como se sabe, teria caracterizado a maior parte do governo Vargas.

Veja senhor leitor e dona leitora, perceba que anacronismo se instala às discussões!

No entanto, passado o período do governo Vargas, um dispositivo governamental tentaria restabelecer a antiga situação, não sem adensar ainda mais a polêmica em torno da questão ortográfica.

Nos anos seguintes à década de 1940, foram muitas as discussões e entraves sobre a ortografia; no entanto isto é assunto para historiadores da língua ou curiosos, principalmente entre os brasileiros e os portugueses.

É verdade que, bem ou mal, ambos os países tinham conseguido superar as divergências mais crônicas e realizado um acordo amplo de reformas ortográficas. Mas não é menos verdade que o resultado final desse acordo ficara muito aquém das expectativas inicias, redundando na manutenção de diferenças ortográficas diversas entre as duas nações. Por esta razão, não demorou muito para que novas propostas de reforma da ortografia da língua surgissem, como ficou consignado durante a Convenção Ortográfica de Lisboa, realizada por Portugal e pelo Brasil em 1943. Nesta convenção decidiu-se pela realização de mais um acordo entre os dois países, no sentido de dirimir as divergências ortográficas que ainda permaneciam no português utilizado oficialmente pelos mesmos.

De fato, data de 1945 a célebre Conferência Inter-Acadêmica de Lisboa para a Unificação Ortográfica da Língua Portuguesa, um encontro bastante entusiasta em relação às possibilidades de uma unificação concreta. Contudo, o entusiasmo de seus organizadores e participantes parece não ter impedido que se incorresse num erro semelhante àquele que acabou inviabilizando a tentativa de reforma de 1931, já que a intenção era mais uma vez atingir uma unificação ortográfica radical .Não se consentem grafias duplas ou facultativas. Cada palavra da língua portuguesa passa a ter uma grafia única, apesar de o acordo procurar fazer algumas tímidas concessões a características lingüísticas do Brasil, reconhecendo a existência e o uso dos chamados brasileirismos.

Mas se a intenção de realizar uma unificação completa revelou-se negativa, como se poderá verificar posteriormente, não se pode negar que o reconhecimento de peculiaridades do falar brasileiro foi bastante positivo, fazendo jus às contumazes tentativas, por parte do Brasil, de viabilizar um discurso nacionalista: de fato, após todo um período de intolerância, em maior (1911) ou menor (1931) grau, a conferência de 1945 foi aquela que mais transigente se mostrou para com as variantes ortográficas do Brasil.

Tais concessões, contudo, não foram suficientes para que o Brasil abrandasse de todo sua posição nacionalista, que continuou prevalecendo em suas decisões finais: a reforma, no final das contas, acabou se inviabilizando, e as principais causas do malogro encontram-se na relutância do Brasil em aceitar pelo menos duas modificações ortográficas: a conservação das consoantes mudas não-articuladas, o que corresponderia a voltar a uma situação, já há muito, abolida no país; a adoção do acento agudo, em vez do circunflexo, nas vogais tônicas e e o, antes de consoantes nasais, ainda que tais acentos marcassem apenas a tonicidade e não o timbre destas vogais. Permaneceu, portanto, uma situação de divergência entre as duas nações signatárias do acordo, já que o mesmo foi, num primeiro momento, adotado por Portugal (Decreto 35.228, de 08.12.1945) e pelo Brasil (Decreto-lei 8.286, de 05.12.1945), mas posteriormente rejeitado por este (Decreto-lei 2.623, de 21.10.1955).

O ano de 1955 pode ser considerado um marco no estudo das recentes reformas ortográficas da língua portuguesa no Brasil, já que data dessa época o último decreto governamental de caráter abrangente sobre o assunto. As decisões posteriores ou teriam um caráter não-oficial (como a moção aprovada no Primeiro Simpósio Luso-Brasileiro sobre a Língua Portuguesa Contemporânea, em 1967, apelando para a resolução das divergências ortográficas entre Portugal e Brasil), ou seriam de natureza parcial (a mais importante fora, sem dúvida, a Lei 5.765, de 1971, aprovando alterações na ortografia da língua portuguesa do Brasil e adotando outras providências relativas a estas alterações), ou ainda não passaria de um conjunto de intenções voltadas para a unificação das duas ortografias (como o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1986).

Com ano de 1955, no decreto (1955), remata-se mais um capítulo da história ortográfica de nosso idioma, mas a recente polêmica em torno do último acordo parece mostrar que esta é uma questão ainda longe de ser plena e satisfatoriamente solucionada.

De qualquer maneira, a partir do percurso histórico da questão ortográfica no Brasil do século XX, a preponderância de um discurso de fundo nacionalista, o qual acabava por transformar toda discussão lingüística num embate tipicamente político, na medida em que buscou utilizar a ortografia da língua como instrumento de afirmação da nacionalidade brasileira.

Assim, pode-se dizer que grande parte da discussão em torno da ortografia da língua portuguesa - como, de resto, em torno da própria língua - redunda na tentativa de afirmação nacionalista de uma vertente brasileira do idioma, em franca oposição à vertente lusitana. O amor-próprio e o sentimento nacional brasileiros parecem, no final das contas, prevalecer.

Pior para os que escrevem mais pelo gosto pueril à comunicação inter-pessoal, à transmissão de pensamentos, ao defloramento dos sentimentos e pelo debate de idéias; do que aqueles que apreciam a política, moram numa grande pátria nacionalista em detrimento aos cidadãos que residem nos municípios e, também, é bom aos homens de boa vontade.

Mas, de qualquer forma, dou-lhes às boas vindas a este blog; meu caro amigo, e minha querida amiga. Podem escrever com a ortografia que melhor se adequarem; ao menos até entrar, definitivamente, em vigor o acordo ortográfico entre os paises de língua portuguesa. Veremos!


Por Ricardo Novais
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