Eu sou a cidade

Imagem de divulgação.

Eu nasci em São Paulo, sou produto desta cidade. Como a pedra inicial que constrói a edificação, uma personalidade que se preze deve também começar pelo ambiente mais trivial. O ambiente é tudo nos caminhos e descaminhos de nossas vidas. A família, os amigos, a escola, a religião, o trabalho...; a sim: as paixões. Neste ínterim, a própria região do nascedouro e da morada será sempre a paixão; seja como objeto em si mesmo, seja como sustentação do objetivo desejado. A cidade é fundamental na formação não apenas do cidadão, mas da própria essência do ser humano; assim, tanto aqui como ali, serão sempre as reminiscências das memórias de nossas vidas que nos formarão como homens. Eu sou a cidade de São Paulo.

Considerando que a cultura é o resultado do desenvolvimento intelectual de um povo, devo lembrar a nossa dependência cultural em relação a Portugal, pois, por muito tempo, somente recebíamos influência externa através desta Metrópole. Os paulistas não foram diferentes. Todos os costumes, ensinamentos e tradição oriunda dos nossos portugueses perfizeram esta nossa civilização bandeirante; ainda que mais tarde, tanto no planalto paulista como no maciço carioca, a cultura afrancesada tenha se sobressaído em nossa pungente sociedade. Em todo o caso, não tínhamos mesmo por aqui, naquele tempo, nem a peste negra, nem um heróico príncipe de coração negro, muito menos um rei usurpador que casasse com alguma princesa francesa; aliás, nem corte havia por essas bandas... Éramos apenas uns selvagens que viviam na acomodação da natureza, nas crenças e numa arquitetura primitiva.

Por outro lado, tendo em vista que nossos primeiros educadores foram os padres jesuítas, nós nos tornamos pessoas impregnadas pela preocupação em elevar a alma a Deus, procurando a servi-Lo. São Paulo nasce à sombra do infinito poder de Nosso Senhor, sob a qual se adequaram, respeitosamente, as formas institucionais do poder dos homens e suas sedes – primeiro com humildes construções de taipa, depois palácios de alvenaria e mármore. Portanto, bendito seja Padre Manuel da Nóbrega, que trouxe do Arquipélago das Canárias o nosso José de Anchieta; pois, posteriormente, designou-o da Capitania da Bahia para a Capitania de São Vicente.

Ainda que desde 1502 tenhamos expedições por terras paulistas, apenas em 25 de janeiro de 1554 que tivemos instalado no Planalto de Piratininga (peixe seco, em linguagem nativa), pela graça Divina, um colégio para catequese dos indígenas. Os índios eram uns bestiais selvagens que não conheciam a Palavra de Deus!

Anchieta descreveu os primeiros anos do colégio: “Nesta aldeia, cento e trinta de ambos os sexos foram chamados para o catecismo e trinta e seis para o batismo, os quais todos os dias são instruídos na doutrina e operações em português e na sua própria língua”.

Desenho de Debret, sob visão da cidade de São Paulo em 1827.

Esta humilde palhoça, erguida pelos jesuítas, foi a pequena semente que deu origem à megalópole mundial. O dia escolhido pelos bons missionários, para a fundação do colégio, foi o dia da conversão do santo apóstolo São Paulo; este também ficou sendo o padroeiro que deu nome ao recém-inaugurado povoado. Melhor dizendo, o verdadeiro padroeiro para o povo paulista é Frei Galvão; porém, não fosse à perspicácia de José de Anchieta, onde estariam todos os patronos bandeirantes? Portanto, roguemos juntos: não vos esqueceis de nossa devoção, principalmente nas enchentes...

Ensinamentos dentro de uma celeuma de idiomas, dentre os que compartilhavam o castelhano, o português e a língua tupi, dentro de pouco tempo pode se traduzir o catecismo para os selvagens no seu próprio dialeto. Isto facilitou a empreitada dos novos aventureiros, já que os antigos, os índios, eram exímios conhecedores da colina circundada pelos rios Tamanduateí e Anhangabaú. Naquela época, não se contavam mais que 30.000 mil pessoas, numa vasta região de planalto com, aproximadamente, 800 metros do nível do mar.

São Paulo, como é da percepção do leitor, vivenciou grandes acontecimentos da vida nacional: a independência, os movimentos abolicionista e republicano, políticas de Estado, greve de operários das indústrias em 1917, revoluções contra as agruras da opressão, para citar apenas alguns eventos. Entretanto, o orgulho paulista é, sem dúvida alguma, serem os maiores responsáveis por alargar as fronteiras brasileiras, perfazendo um território enorme e construindo uma grande nação ou, pelo menos, uma nação grande... Isto só foi possível com o advento das Entradas e Bandeiras.

Um herói. A pose altiva, o olhar penetrante, as armas novas e a roupa impecável; assim são reverenciados os nossos distintos e audazes bandeirantes paulistas. Pouco importa se o desbravador não era branco e sim mameluco, manuseava com presteza tanto o arcabuz quanto o arco e flecha e falava mais tupi do que português; aliás, como a maioria dos paulistas.

A paisagem fantástica na realidade era dramática. Aguerridos homens saiam de São Paulo para floresta atlântica. Um mar de árvores que eram abertos a golpes de facão, e, além disso, os audazes expedicionários eram sujeitados a todas as dificuldades e aos perigos de uma vida selvagem ao extremo.

Diz a velha fábula carioca que tudo não passou de um mito paulista criado no período da proclamação da República, em 1889, e em suas primeiras décadas; pois os cafeicultores se tornaram, a um só tempo, a elite econômica e política do País, sendo assim, o sertanejo bandeirante servia como sugestão histórica de que o poder deveria emanar de São Paulo, já que seu povo era descendente de bravos comandantes natos. Porém, isto pode soar injusto aos ouvidos de quem vive entre a Serra do Mar e o restante do planalto oeste, posto que seja da natureza paulista conduzir o Brasil da ordem e do progresso. De qualquer forma, no século XX, o que era apenas sugestão histórica virou política pública.

Entretanto, tudo seria impossível se estes desbravadores do sertão não tivessem a ajuda dos índios; por sinal, creia meu incrédulo amigo e minha melindrada amiga, por aqui os selvagens colaboraram na captura de membros de sua própria tribo. Bendito sejais os ensinamentos jesuíticos!

Em longas andanças, nossos bravos exploradores aumentaram o território da colônia vencendo os domínios do subjugado Tratado de Tordesilhas. Isto mesmo! Os sertanistas contribuíram para o estabelecimento das dimensões territoriais desta nossa amada pátria; ainda que movidos pelo desejo de sobrevivência. A ocupação dá o direito a terra! Portanto, os bandeirantes são heróis sem terem tido este intuito.

Não obstante, existiu algum tipo de brutalidade e ataques-surpresa onde morriam alguns selvagens. A causa era que o terror evitasse que os remanescentes resistissem. Onde havia missionários, entre as tribos, os índios se refugiavam em suas igrejas. Tentativa desesperada de escapar do pavor bandeirante. Saliento o relato do reverendíssimo jesuíta Antônio Ruiz de Montoya: “Entravam ao som de caixa e em ordem militar (...), destroçando índios à machadadas; os matavam como no matadouro se matam vacas, tomaram por alfaias litúrgicas e chegaram mesmo derramar os santos óleos pelo chão”.

Mas, ora! Indígenas sequer eram cristãos! Deste modo, não me interprete mal, mas decapitações e esquartejamentos perfazem estratégias prosaicas. Inadmissível, porém, apenas a concupiscência carnal dos paulistas deflorando as mulheres dos indígenas. Afinal, o que é a vida perto da honra?

Em todo o caso, não creio ser de intenção dos jesuítas demonizar os sertanistas, posto que muitos religiosos também participassem das bandeiras. De modo que grandes paulistas delinearam a história, e, por que não, o caráter de um país. E é nesta cidade que nasci...

Desenho de Diva Benevides Pinho, sob panorama da Era Cosmopolita.

Tudo que eu já vivi nesta minha breve história pode ser apenas o prelúdio de minha vida... A vida que virá... Sou e sempre serei uma herança dos bandeirantes à cidade provinciana, da cidade à região desenvolvida, da região à metrópole nacional, e, por fim, da metrópole à megalópole mundial. CRESCER, CRESCER, CRESCER...

Por Ricardo Novais
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