Uma Noite Surreal

A Esplanada do Café na Place du Forum, pintura de Vincent Van Gogh.
No meio do banho, houve um pequeno blecaute na energia elétrica. Embora fosse dia mais quente, a água era muito fria, mas vinha a calhar em alívio às dores de cabeça. Fiquei olhando para os mais de setenta furos do chuveiro, deixando a água gélida chocar-se à cabeça. Passei a manhã muito mal, recuperando-me, entre afazeres do cotidiano, de bebedeira fantástica e em grande abstinência etílica.

A ressaca provocada pela grande intoxicação alcoólica absorvia não somente o uísque, a cerveja e a tequilla, mas sobrecarregava meus órgãos envolvidos neste processo. O fígado, coitado, trabalhou incessantemente produzindo enzimas que absorvessem o etanol, continuando no modo bêbado quando o álcool de meu corpo já havia eliminado a alta concentração de toxinas – mas o sistema nervoso parecia necessitar de mais álcool para processar. Desorganizou-se o metabolismo. Tudo era mal. Adequei-me ao ritmo bebum de meu corpo, pouco às avessas; é que o mundo acompanhava a minha crise e a longínqua freada de automóvel podia ser ouvida em som estridente, a sirene do hospital da quadra adjacente soava dentro de meus tímpanos, a vizinha provocava-me algo que remetia à maldita casa noturna ordinária, o barulho de impressoras e máquinas de xérox perturbavam toda minha concentração e a campainha de algum aparelho celular tovaca freneticamente causando incômodo às minhas têmporas. "Desgraçados! Não vêem que tem alguém de ressaca aqui?", pensei comigo. Se eu pudesse, não veria ninguém além da escuridão de meu leito imaginário; ora! O leitor imagina insuportável dor de cabeça, desidratação, enjôo, cansaço extremo? Sim, foi isto. No entanto, soma-se às sensações ruins também certa desgraça moral e até alguma psíquica...

Depois de algum tempo, enfim, consegui relembrar que a noite foi passada entre amigos de patuscada em tradicional bar. Foram muitas doses, de fato. Mas ocorreu um fato extraordinário, totalmente anormal naquele recinto. Foi na mesa ao lado. Lá, sentados e falando muito alto, dois senhores e uma senhora loira. De repente, o sujeito de camisa vermelha levantou, derrubou o outro senhor de camisa amarela no chão e sacou revólver. Houve grande alvoroço no boteco. Parecia até filme de faroeste clássico. O pistoleiro com duas armas na mão defendendo a honra própria e, o que julguei ser, a de sua esposa. O outro homem, que não me pareceu armado, rolava no chão, amedontrado, implorando pela vida como se pressentisse a morte. Todos no bar fugiram como ratos acuados – menos um amigo bêbado e eu. Bêbados não se acuam nem se abalam com facilidade... Ficamos lá, em nossa mesa escura de madeira forte, com os copos miúdos à metade, observando a tudo de camarote. Confesso, a mim divertiu tudo aquilo; embora estragasse o sagrado momento boêmio. O espetáculo foi o grande desentendimento por causa de uma dama da noite. Dali, da mesa ao lado, o que eu vi? Eu vi, caro leitor e queridíssima dona leitora, um homem descarregar os revólveres no meio da fronte de seu antagonista amoroso, esguichando grande quantidade de sangue e algum líquido pegajoso que provavelmente poderia ser algo referente ao cérebro, caso o morto tivesse algum. Nisto, meu amigo corajoso e eu, ainda mais valente, levantamos, pedimos a conta e fomos embora.

Por Ricardo Novais
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