Extra! Extra! Rio!

Nenhuma ideia vale o sangue de um homem... Imagem: Atelier J.Victtor.

Sou o único cidadão de bem desta cidade que não tem medo do mal. Tanto que, na noite passada, dei um magnífico jantar em homenagem ao filhote da grande baleia capturado na entrada da Guanabara. Desgraçadamente ele se debate, bate, debate e bate nas paredes de vidro do apertado aquário no qual tentam acomodá-lo como troféu à glória da virtude dos homens civilizados. Uns o querem morto e exposto em loja ordinária de castiçais num shopping center da Marquês de São Vicente; outros creem que, para dar exemplo à valorosa sociedade, o melhor a fazer é matá-lo e depois devolver o cadáver ao mar. E que o diabo o carregue!

Mas o sucesso de minha festa independe disto ou daquilo, caro leitor. A vida nesta cidade compõe-se de jantares, eventos de caridade, futebol, shows de música e sessões de julgamentos alheios; é uma permanente sincronia universal. Coisas maiores, leitor! Coisas maiores!

No meu jantar de caridade, em meio a distintos e ilustres convidados, levantei eu taça do meu melhor champanhe me manifestando  sempre acompanhando, claro, as ideias de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Redentor, pregadas por São Sebastião, São Jorge e pelo Almirante Tamandaré  que o trambolho se estilhaçará por conta própria e nunca por ser o aquário minúsculo ou pelo vidro que lhe espreme cortando sua pele. Pele de animal! Eu ainda disse, em alto e bom som, que toda a República deveria ter as mesmas ideias e seguir o meu modelo de conduta. Por fim, declarei à digna mesa que a ordem e a moral são dádivas de Deus, e aquele que contraria a lei, a boa conduta e os bons costumes, deve pagar com a própria vida pelo ato. Sim! Nenhum cadáver é meu, todos são oportunos; porque nenhum cidadão de bem é obrigado a conviver com o mundo e sua violência psíquica e pervertida.

Fecho os olhos então, leitor, e vejo todos os meus convidados brindando a mim e às minhas palavras, todos impelidos de admiração. Em meio aos tapinhas às costas e mensagens de força e esperança à grande nação, comentam o meu desprendimento, a minha filantropia. “Grande humanista!”, escuto quase adormecido. Não, leitora minha, não carrego rompante ou empáfia balofa! Sou eu tão-somente um cidadão de bem que também quer ver a paz na sociedade e o mal reduzido à carcaça. Creio que sou muito bem quisto por isto, pelas minhas boas opiniões cristãs e moral ilibada; parece-me que até sairá matéria  jornalista, é bom que se diga  sobre a minha personalidade caridosa e corajosa nos grandes jornais, nas revistas conceituadas e nos emocionantes canais de televisão, e traçarão ainda o meu perfil humanista em sofisticadas colunas sociais, em documentários de cidadania internacional e em redes sociais da internet; todos sedentos por letras impressionadas. E suponho que serei manchete por toda a cidade, todo o país, quiçá por todo este mundo.


Esclarecimento: Consta que o filhote da grande baleia é um navio-fantasma da Marinha Brasileira. A embarcação, de guerra, espectro encalhado da luta pela Independência, tem o nome de Lord Cochrane  com paciência e perseverança, tudo se alcança.

Por Ricardo Novais

Minha Cecília

Imagem de arquivo.

Cama desfeita, célere amor...

A cama redonda era o ninho da lascívia. O teto e as paredes espelhadas eram o rudimentarismo do prazer. Eu beijava Cecília com o afeto simbiótico da cobiça. Tinha lampejos de consciência, o resto todo era desejo.

Lá do box embaçado do banheiro ela me chamava. Aclamação química! O vapor da água quente se misturando à fragrância do sabonete vagabundo, ao gozo dos perfumes dela e à respiração deleitosa. Cecília, de costas. A água temperada caindo sobre nós. Eu mais juntinho a ela, beijando-lhe a nuca, alva, buliçosa; tudo num afago sexual... Não imaginas, leitor, como aquela mulher era provocante, com grandes olhos castanhos maliciosos pedindo para satisfazê-la, querendo me engolir, e estes gestos trançados a sinais delicados e elegantes. Cecília era quase natural. Naquele momento encontrei minha companheira eterna; naquele momento encontrei meu Nirvana, o ápice que me libertou.

No aconchego do enlace íntimo e indomável, não consegui conter o coração vilipendiado. É que o cheiro da volúpia era tanto maior que o cerne sentimental. Coito vasto, concupiscente, sedento, perturbador de todos os pontos nevrálgicos da luxúria. Órgãos humanos libidinosos, ora expostos ora entrecobertos, à meia-luz, sob clarividência da paixão pervertida. Fomos molécula, micha, mucosa, placenta, asqueroso pus... Tudo nutrindo nossos corpos, nossos corpos nus. Era um cruzar de pernas e movimentos atingindo labirintos entre brumas despidas.

- Sou insaciável, cachorro! ela gritava-me em toque de ordem irresistível. Vem meu cachorro, vai! .... ... ..! Vai!

- . ..? Ah, ......! ........!

Penetração carnal, suja, violenta; e ao mesmo tempo terna, afetuosa, apaixonante! Ela jogada de quatro no chão de carpete marrom-claro vulgar, espremida do espelho manchado de reflexos extravagantes; eu com a musculatura e ideias que poderiam muito bem ter durado a eternidade, mas que foi breve tremor de artérias túrgidas. Preservativos que não usamos. E nossos corpos entrelaçados, num bater de joelhos deleitoso, em sussurros que ora viravam urros de prazer ora eram simplesmente gritos de um amor fugaz, quase estéril. Não couberam ali fingimentos de preliminares, gestos turgescentes e disposições sexuais fomos o próprio orgasmo.

- .... ... ..! Vai! .... ... ..! Vai! .... ... ..! Vai!

De repente, em meio aos filmes eróticos, às músicas de cabaré francês e à sombra esparramada de dois amantes, Cecília percebeu mensagem urgente. O marido a procurara mais cedo em casa. Saímos de nosso ninho voluptuoso às pressas, derrubando lençóis ao íntimo carpete marrom-claro e ainda deixando um gosto impudico às taças de amor abandonadas pela metade.

Querida leitora, acredite-me; não conto aqui uma aventura vil de autor depravado. Oh, não, senhorita leitora minha. Relembro-me tão-somente o esplendor da sensualidade de minha amiga mais perigosa e enigmática, pois foi exatamente este dos meus casos o que jamais consegui esquecer e não esqueço! Alcancei a alma infinita, porém maculada. Sinto falta do rugido sedento de Cecília, com seus grandes olhos castanhos lúbricos e provocantes. E só digo isto, nada mais.

Por Ricardo Novais

Vida de Clarice

Clarice Lispector.

O tempo está em tudo. O tempo está no assoalho gasto onde tantos já pisaram e não pisam mais, nas velhas xícaras de porcelanas e nas cadeiras de mogno vazias. Quase nada pode ser dito sobre o pouco que se sabe de Clarice da Conceição, exceto que ela era praticamente venerada por seu noivo, Agenor Rubião. Que força que tem o tempo... Tudo reduzido ao resto. Raras imagens mostram que ela seja morena e bonita, com longos cabelos negros e olhos escuros. Acredita-se que conheceu Agenor no metrô. A maioria de seus amigos a descrevem como espécie pacífica e artística, com um gênio tão indomável como a sua xará das letras, Clarice Lispector. Não mencionam, no entanto, a sua dependência em álcool e se se tornou viciada antes ou depois de conhecer o seu amado. Há certos contos, estimado leitor, que se escondem atrás do autor. Este é o caso.


Agenor Rubião e Clarice da Conceição foram, de acordo com correlatos boêmios, perfeitos para si. O termo composto "almas gêmeas", termo composto de melancolia e fugacidade, define bem o relacionamento deste casal apaixonadamente feito de madeira maciça – madeiras existentes nas melhores casas de bêbados. Sim, leitora romântica, mais de uma vez ouviu-se pelos salões os suspiros das mocinhas debutantes com fagulhas de deslumbramento por onde eles passavam. Sentenciava uma senhora ali: “Que casalzinho bonito! Pombinhos!”. Comentava um motorista de táxi acolá: “Têm a vida inteira pela frente. Deus os conserve!”. Não zombe tanto, leitora jocosa, do estilo da escrita que a tudo parece inundar com a compulsão de amar sem medida. Ora! Mas se são tantas as medidas do amor...

Mas nem todo amor que houver neste mundo é capaz de superar os enleios da vida. O mesmo tempo, cruel e necessário, que se seguiu, tão indiferente aos ponteiros humanos, foi distanciando Agenor de Clarice. O noivado se desfez, em algum momento incerto. Tudo que Agenor fez para evitar o rompimento foi um pedido miserável de autopiedade. Isto não bastou para reconquistar a bela Clarice da Conceição. A bebida então passou a salvar-lhe da comiseração e do lamento de uma relação na qual o homem quer o casamento e compromisso, e a mulher foge. Ninguém está realmente certo se houve uma tentativa de trazê-la de volta para ele, mas se houve ele falhou miseravelmente.

- A culpa é minha por não saber o que eu deveria ter conhecido... – Agenor repetia isto religiosamente às dez horas e quinze minutos de todas as noites no balcão do boteco da esquina. Dizia, tragava e emudecia. Embriagava-se. Só ia para casa quando alguém ia lhe arrastar da taverna ou quando chamavam a polícia por alguma briga de bar.

Clarice faleceu devido a uma inflamação do coração causada por uma intoxicação alcoólica. Não houve coma alcoólico, como se disse à boca pequena; em vez disso, seu coração simplesmente cresceu demasiado grande para seu corpo pequenino e gracioso. Muitos acreditam que este foi o último prego no caixão de Agenor Rubião – o desgraçado já estava sofrendo lutando numa batalha perdida contra o vício avassalador, e a morte da amada era a perda de parte de si próprio. Todos davam um relógio de vinte e quatro horas para o suicídio do alcoólatra.

Quebrou-se o transgressor espírito de um coração talentoso e cansado de bater lento, leitor.

- Morri, desde que você morreu – ele se resignou, por fim.

- Oh, não! Agenor, não!

Morreu. Deixou uma cicatriz e uma chatice repetida, sangrando por uma mulher envolta em mistério e silêncio poético que foi perdida dentro de uma garrafa de uísque.
 
Por Ricardo Novais

Jaz, o escritor, onde sempre esteve

O escritor, à espera da morte. Foto: Pedro de Moraes.

Meu nome é Joaquim Maria da Conceição. Sou um escritor solitário. Mesmo quando encontro companhia, sinto-me só. É de minha natureza, o tédio me corrói. Se eu tivesse me casado ao menos tinha alguém para arrumar minha cama agora que sou velho, mas não, nem isto eu fiz. Para ser muito sincero, é impossível descrever o que sinto. Não é apenas dor sufocante; mais que isto, é a perturbação de pensamento que me contamina impetuosamente. E o pior é que gosto disto. Rememoro a juventude. Estou muito doente, doença grave. O pior de ser velho é ser bufão, tenho o néctar dos sonhos que não se realizaram plenamente. Quanto menos eu tenho hoje tanto maior é o meu prazer em não ter nada. De manhã, penso em me levantar do leito moribundo e correr... Mas um sono entorpecente me impede.

A vontade de correr persiste, no entanto. Correr como um leopardo nas savanas africanas ou nas ilhas do Ceilão. Sem motivo e sem destino certo; apenas sair correndo pela vizinhança fugindo dos problemas até o final do bairro, e de lá cruzar a cidade grande de norte a sul e depois de leste a oeste. Em seguida, deixando a angústia para trás, percorrer todos os grandes Estados brasileiros para chegar... a lugar nenhum! Enfim, apenas correr, correr da própria vida; correr, correr, correr...

De minhas obras, nada também ficará. Destruirei tudo. Não acredito na eternidade. Numa tarde futura qualquer, numa feira de velharias da Praça da República, alguém encontrará um texto meu que ficou perdido por destruir. Justo o escrito mais feio, o que me esqueci de apagá-lo. Será alguém com frescor ao rosto. Será apenas este o meu leitor. O arauto proclamará: Este deve ter sido um atrevido com alma de escritor.

Percebe, leitor aventureiro de agora, como é este do mesmo modo o último alento? Se não percebes é porque o livro está aberto em tuas mãos, sendo lido. É o último alento. No término da página, nenhuma palavra mais suspira. Tantos suspiros se refletem demoradamente, nenhum se traduz.

Rostos de todas as cores e de todas as idades perceberão a solidão, mas não perceberão o escritor. O nome Joaquim Maria da Conceição passará então em brancas nuvens da literatura maldita, sem muito talento e com pouca vontade da vida. Assim, marginal. O livro aberto, de repente, com alguma coisa que implora por manifestar-se e é impedido por letras do imponderável; e ainda pedindo, mais escancaradamente, por fim: Vá à prosa, senhor autor! Eis o derradeiro escrito, e só.

Por Ricardo Novais

Nietzsche, por certo, condenaria o Brasil, pois não pôde conhecer o paraíso

Brasil visto pelo egocentrismo paulista. Arte: Blog Borrifando.

Três jovens, passeando de carro, avistaram algo grave:

- Tem uma pessoa coberta no asfalto, deve ser assaltante! – apontou Heitor.

- Essas coisas são comuns aqui no Rio... – reconheceu Roberto.

- Também em São Paulo! – retrucou o outro em consolo bobo.

Enfim, concordaram em alguma coisa os dois primos. Sempre se encontra algo em comum entre as pessoas...

Diante da anuidade deste consolo inocente, Xavier se pronunciou, sumariamente:

- Pode ser, mas não troco nossa violência por aquela maluquice que vocês têm lá... – disse o doce rapaz, fitando Heitor, que, por sua vez, calou-se.

Mas alcançando que deveria, também, dizer algo em favor de sua cidade, o outro carioca  alfinetou:

- Verdade mesmo, Xavier. Por aqui as pessoas se cumprimentam, vão à praia e percebem o nascer do sol. Lá todo mundo correndo e achando que estão vivendo... Cidade horrível à beça!

- São Paulo pode não ser a mulher mais bonita do mundo, mas, sobremaneira, é a mulher mais charmosa sob a face da Terra... E, meus caros, à medida que se envelhece, valem-se mais a elegância e a inteligência que a beleza!

- Pô, meu irmão! O velho poeta boêmio já dizia: “Que me desculpem as feias, mas beleza é fundamental...”. Não troco o Rio por nenhum lugar deste mundão...

- É?... Aposto que aquele sujeito que ficou estirado lá atrás, no asfalto, também não trocaria... – ele sorriu – Agora que o coitado não pode trocar nada mesmo... Pobre diabo!

Heitor disse isto por escárnio e por certa raiva dos amigos, ou seja, poderia ser qualquer sentimento, menos compaixão. Antes de seguirem viagem, eles caíram num silêncio profundo, tristes e, até, reflexivos.

A lôbrega que havia se instaurado foi quebrada, finalmente, pela seguinte frase que, além de perfazer toda a oração, continha uma representação antropológica:

- O cara morto lá no asfalto... Deve ser um paraíba! – foi o que constatou Xavier.

Tal qual um filme célere, que passa pela mente em segundos, Heitor pensou mesmo que a correlação, entre o determinismo de ser nordestino e a denominação pejorativa atribuída a ser um “paraíba”, aponta um estigma carioca. “Malditos estigmas!”, ele resmungou. Embora alguns, mais antigos, tenham por si que a cognação corresponde aos provenientes do além-Paraíba; ainda assim, seriam pessoas da mesma estirpe e marcadas apenas por delimitar limites oriundos do norte do rio Paraíba do Sul.

Bendita seja a Feira de São Cristóvão!

Marca de supressão também existente entre os paulistas, pois que denominam de “baianinho”, “baianão” ou “baianada” todas as mazelas sociais e suas derivativas. Pobre sina esta dos que têm sua raiz nos que clamam por Padrinho Cícero! Ainda refletindo sobre este pensamento dos jovens amigos, verifica-se existir espécie precavida de apartheid sócio-regional de norte a sul do Brasil; ou do sul para o norte, mas isto não importa muito... Temos mais uma divisão supérflua, talvez imbecil, neste país. País que teima em não amadurecer... Mas perceba, meu irmão nordestino, acompanhe, por favor, o meu atilamento. Veja se não concorda comigo que é comum a classificação teatral numa sociedade de aparências; os próprios habitantes do nordeste brasileiro alcunham de “são-pauleiros” os seus sertanejos que vêm à São Paulo trabalhar na lavoura. Os cidadãos do mundo inteiro têm sinais característicos da inflexibilidade humana, em sua habitual inclemência que não aceita diversidade cultural, ou na simples cegueira social. “Paraíbas”, “baianos”, “bolivianos”, “cucarachas”, “sudacas”, “argelinos”, enfim, ainda que artificiais, são mesmo malditos estigmas!

Destarte, as concentrações urbanas badaladas reverenciam cariocas, paulistas, mineiros, paranaenses, gaúchos e assim por diante, em detrimento a todo um povo legítimo, originário de toda uma nação. Onde Cabral aportou, afinal? De onde vem o próprio nome Brasil? Só isto já bastaria para verificar que se há algum débito entre as regiões este é do sul/sudeste para com o nordeste. Num povo tão esparso como o nosso, onde até dentro dos municípios as idéias se confundem, não há mais espaço para a convivência? Assim como, também, teima-se que as áreas metropolitanas do Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Recife, Belém inventarão o progresso. Mentira! Talvez haja mesmo algum progresso, alguma civilização, mas falte a ordem, a consciência humana; portanto, será tudo dissimulação caso reneguemos nosso berço. Parece-te cômodo que agricultores sejam “jecas”? Estamos é fabricando e embalando cidadãos flexíveis, de espírito atalhado ao enriquecimento do extraconhecimento, de igual modo aniquilamos a cultura livre, descartando tudo aquilo que  poderia nos tornar brasileiros autênticos e não esta sociedade deslumbrada e estereotipada que somos hoje.

As plantações hodiernas de cana de açúcar, a moderna indústria, a mineração e a siderurgia, a agricultura da soja e a diversificação da economia em todas as áreas (inclusive as longínquas lavouras na roça e a pobreza de lugares como o Vale do Jequitinhonha, onde não se consegue garimpar a própria vida), não são representadas pela sua própria cultura, mas sim pelas tais áreas metropolitanas. Para a legislação ordinária pátria, que também é prevista na Magna Carta, todos os brasileiros são iguais, sem diferença de raça, crença, classe ou de qualquer outra natureza social; entretanto, pragmaticamente, os municípios apresentam-se, paradoxalmente, separados do desenvolvimento, quase retrógrados; posto a representatividade política que possuem as metrópoles. Em todo caso, é sabido que as pessoas moram em casas, apartamentos, sítios, chácaras, chalés, barracas, barracos, embaixo de pontes, enfim, vivem nas residências, e não envoltas em bandeiras. Portanto, sendo assim, e sem me estender mais, digamos que a antinomia incontestável do pensamento nacional está no fato do Estado não se ater apenas em suas únicas duas obrigações: de promover um meio para realização da cultura; e, como diz Nietzsche, de fazer um ambiente para nascer o além-do-homem.

Fossemos mais rigorosos, concluiríamos que jamais houve um autêntico federalismo no Brasil ou, ainda, que, nós brasileiros, vivemos uma tragédia de composição federativa. Sem uma cultura autêntica, este país vive de decretar regras e mais regras, a torto e a direito... Quais resultados? Responda o senhor mesmo, leitor, ou peça ajuda a minha amiga dona leitora.

Desculpe ao cidadão e também a eleitora, porém toda esta minha irritação é quanto à cisão, tipicamente, brasileira, agindo intempestivamente, como se irmãos tivessem que se tolerar. Tolerância, intolerância; por que não convivência?

Com isto escrito em aflição, assustado que fiquei com a onda xenófoba registrada no Twitter e outras redes sociais da internet, talvez deflagrada pela campanha política sórdida feita nesta última eleição republicana, percebo que este nosso país é um paraíso fantástico – filho único e resto de tudo.

Por Ricardo Novais

Estratégia da Traição

Imagem de arquivo.

Noutro dia, à mesa de bar, línguas femininas afetadas pelo álcool me questionaram qual ser o pensamento masculino sobre a paixão enfática. Aqui não nada direi, absolutamene nada, acerca do que eu penso; até para não incentivar o leitor varão à promiscuidade e assim escandalizar a dona leitora, que me é tão querida. Questão de cavalheirismo do blogueiro.

Mas num esforço de memória, já que a gentileza é do autor com aquele que tem paciência para ler as enfadonhas linhas deste blogue, o que me deixa deveras contente e também barbaramente surpreso, transcreverei a seguir o diálogo que ouvi no botequim entre vozes sedentas. Advirto, entretanto, ao amigo leitor e, principalmente, à amiga leitora, que discutiu-se causa infidelíssima: estratégias de amar.

- Sabe, Bárbara; – disse um rapaz que já dava sinais claros de embriaguez –, incomodo-me muito e muito com algumas coisas que fazem... As mulheres... Quer dizer, por exemplo... Não sou contra ver a minha namorada encontrar o ex-namorado dela, mas me parece ter nisto algo a mais... Entende? Há coisa ali... Compreende? Eu sinto! Sinto! Putz, que droga! E.. E, além disto, tenho que ser sincero: fico puto por não saber por qual motivo ela havia traído o antigo marido... Sim! Ela já foi casada; você sabe, né? Acho que já te disse... Puxa! Por que diabos as pessoas enganam umas as outras, porra?

Mesmo falando deste modo engasgado, o rapaz, acredito que o nome dele era Cassiano, fez pergunta claríssima, por fim. Porém houve silêncio. Foi como se eles refletissem sobre o mérito da questão. Sem saber e nem obter tal resposta de sua amiga, ele olhou para ela, sentada à sua frente, naquele bar de mesas escuras como a noite, e resolveu reformular a pergunta; porém nisto acabou sendo ainda mais direto e incisivo, além de correr algum perigo:

- Você é uma pessoa experiente... E é mulher, porra! Então, eu me atrevo: por que diabo as mulheres traem?

- Ora! Como é que eu vou saber, Cassiano? Meu, você é idiota? Que ideia! Seria o mesmo se eu perguntasse: por que os homens traem? – Bárbara demonstrou ter ficado irritadíssima. Mas por enquanto, deixemos isto de lado. O tonto gaguejou:

- É... É...

- É ou não é?

- É; ué!

- Então?

- Caramba, meu! Aí é... Aí é comer churrasco grego na Praça da Sé; né, porra? Você entendeu a pergunta! No seu ponto de vista, Bárbara... Quer dizer, qual o ponto de vista feminino sobre a traição?

Ela nada disse. Refletiu, olhou para o seu interlocutor com certo desdém e, por fim, sem muita convicção, constatou não poder arrumar um ponto de vista de tal assunto. No entanto, como se entendesse a angústia do outro, esforçou-se por engolir o pouco-caso e se lembrou de um exemplo familiar:

- Veja.... Eu acho que não há conceito sobre traição, infidelidade... Bem, o que ocorre são situações; cada um tem lá algum motivo para cometerem certas atitudes ou para fazerem algumas coisas que entendem que devam fazer, em algum momento... – Bárbara olhava para ele, falava-lhe com afetividade, com carinho que atenuavam a opressão residente na infidelidade. E continuou caçando alguma resolução para aquela questão insólita. Pobre mocinha!  Eu tinha uma prima, lá da Itália, que foi assassinada pelo marido. Foi caso de infidelidade, sabe... – ela parou de falar novamente e iniciou uma recordação confusa, ainda mais melancólica que entregava a intimidade de boêmios habituais. Era relato trágico de adultério acontecido em família de Terzigno da Campania:

- Pois muito bem – Bárbara sobressaltou-se. Verdade que na região da minha família é inadmissível este tipo de comportamento... Traição. Ocorre que este episódio calamitoso com minha prima, não é único... As minhas tias e avós, principalmente quando não tão maduras, traem...

- Hã? Você também? – esta pergunta feita por Cassiano soou como troça. Ela respondeu com ironia:

- Ainda não casei, queridinho; mas... certamente serei viúva! Bobo, deixe-me contar... Lá na Campania as pessoas se relacionam pela emoção, paixão, mas, no fundo, são todas peças de um jogo de xadrez. Os peões são os primeiros a serem sacrificados, o cavalo cruza a tabela tentando salvar tudo, as torres morrem pela rainha que acaba por deixar o rei sozinho levar o xeque-mate... A primeira coisa, no entanto, é ser bom estrategista.

Ela sorria com volúpia iluminada e solércia inevitável:

- Meu bem, – Bárbara o jogou um olhar malicioso e ao mesmo tempo piedoso  por que estou dizendo isto? É que, torno a dizer, na minha família, claro que homens não participam dessas conversas... Claro, claro! Mas lá costumam dizer as donas mais velhas, mais experientes; se é que você está me entendendo; que a traição é a compensação de uma vida regrada de uma esposa devotada... Cassiano, você está entendendo mesmo o que estou a...?

O entretido fez sinal que sim, embora estivesse de fato entrado com os dois pés em estado de súcia boêmio. Ela pareceu sopesar mentalmente a própria narrativa, em seguida suspirou muito profundo. Por um instante mais suspirou e, apenas depois deste ritual compenetrado, recobrou a fala galante e peculiar:

- Cara! Meu! Eu tinha uma tia, também lá da Itália, que comparava o comportamento infiel com uma dieta alimentar; destes regimes que todas as mulheres fazem desejando muito emagrecer um pouco que seja... É aquela coisa de ter um corpo perfeito, bonito... Porcaria de ditadura da saúde, onde tudo tem de ser saudável, e a puta que p... Né? – Bárbara já sorria por afetação. – Ela dizia – recobrou-se um pouco e continuou na espoliação mental  que para perder dez quilos, deve-se ficar seis meses comendo alface no café da manhã, no almoço e no jantar. Assim, mocinho, é coisa muito justa nos galardoarmos com belas lasanhas...

Cassiano achou graça no resquício do raciocínio bafofo que ele conseguiu assimilar:

- Lasanha?!

Eco! Isso quando não se consolar também com ravióli, calzone e, até, com uma maravilhosa feijoada... – asseverou Bárbara barbaramente, e galhofando com vontade. – Está vendo, meu bem, às vezes as traições são compensações de uma vida infeliz, noutras vezes são afirmações pessoais ou ainda podem ser simples experimentos de sexo... Olha, a questão sexual sempre se sobrepõe à questão amorosa... O lascivo, promíscuo é prazeroso... Enfim, a mulher é humana! O homem é humano! Todos querem sexo, e todos erram... Não importa o motivo; quando você engana alguém, engana-se também. Mas quem não se engana?! É... Quem não se enganou ao menos uma vezinha sequer na vida?! Não é mesmo?

Perceba, meu estimado amigo leitor e também a minha tão querida e adorável amiga leitora, aqueles dois jovens, com a ajuda do uísque, falavam de fato era sobre as estratégias do jogo de xadrez. Xeque-mate!

Por Ricardo Novais
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