Arte do Sinaleiro Amarelo. |
Não me importo com nada. Nem com esta cidade, nem com os problemas de meus vizinhos e nem com o que dizem as línguas dos queixosos do metrô. Eu sei que todo
habitante de São Paulo reclama da cidade, jura que não a tolera mais e que irá
abandoná-la na próxima estação. Eu sei, mas não queria saber. São poucos os que verdadeiramente deixam a
megalópole, e são muitos os que chegam trazendo os seus sonhos de vida de fruto –
ou fruto de vida, dá no mesmo porque tudo é a mesma secura que busca a chuva abundante. A garoa que cai incessante embaça a visão, e uma visão ofuscada só vê o que quer ver. De longe, todos os paulistanos são ricos e elegantes; de perto, são pobres e humanos; depois que passam pela rua voltam a ser ricos e elegantes. A ilusão é ser iludido... Mas eu realmente não me importo com nada disto, não quero sair de meu confortável vício. Ora, leitor; assim é a cidade grande; um enorme
emaranhado corrupto da vida, que ilude maltratando e enganando; e que, mesmo assim, tanto
fascina...
Vivo nesta cidade, mas esta cidade também vive em mim; desde antes, desde
a cidade antiga, da cidade que cheirava a cavalo, destruída pelo progresso, da
velha Rua Quinze, tão afrancesada, com aqueles complexos trilhos dos bondes, de
homens de chapéu e gravata borboleta, dos vaga-lumes e suas escadas de madeira ascendendo os lampiões públicos no finalzinho da tarde; e se a garoa ainda é quase a mesma, agora
sinto falta das íntimas calçadas de pedra que deram lugar a uma outra sociedade
de sofisticados cafés, elegantes vestimentas. A cidade agora é toda vertical, de gente de todas as idades e todas as cores; é uma Sampa high-tech dos diabos. Contudo, nada disto me interessa; meu compromisso com a história cosmopolita dos trópicos deixo em futuro.
E se esta gigante urbe Pauliceia ainda continua a ser minha edícula é porque, quando coloco os meus pés para fora do portão de minha casa, tenho vertigens. Vejo as ruas e é como
se eu estivesse saindo do meu quarto para me reunir na minha sala de jantar com minha
família. Uma família grande; oh, sim! Família de milhões de parentes que eu não dou a mínima. A única salvação é que não tenho como
deixá-la, pois minha vida já está no meio de tudo. Sendo assim, nem ouso conjecturar, como
os outros, em abandoná-la. A elegante senhorita leitora me entende, certamente; já que com ou sem
amor, com sucesso ou sem nada, serei sempre um fruto verve desta nevrálgica terra. Paulistano!
Paulista! Brasileiro! Italiano! Baiano! Puto! Sou tudo isto, exceto bandeirante. É que todas as minhas
virtudes e todos os meus vícios foram formados no ânus do panorama desta
vida urbana. Tenho um coração contraditório, como sabe; sou airoso, palpitante. Carrego em meu peito o doentio coração de São
Paulo. E, sendo até repetitivo, digo que não me importo um nadinha com ele; nem cardiologista eu sou...
Nas
madrugadas frias, tomo sopa no Ceasa; nas madrugadas quentes, fico bêbado em qualquer canto. Agora sou homem do asfalto recapeado, da poeira que cai
em fachadas de prédios abandonados pelo tempo. Sou aquele mesmo cidadão da
cidade grande que se perde a cada esquina e que se acha mais à frente num beco
escuro sob o vulto feminino trajado de vermelho... E como eu não me importo com nada nem com ninguém, ninguém nesta cidade também se importa comigo. Parecem-te cruel estas palavras, leitor? Perdoe-me, mas seja sensível o quanto quiseres que eu nem ligo. Apenas constato a minha sinceridade depois de ficar exposto à tempestade imponderável de verão. Se não crê no meu raio de realidade, meu amigo, então suba o Pico do Jaraguá, aonde todos os trovões do mundo se formam e todas as festas da chuva se originam em algum momento, e veja com seus próprios olhos, sempre embaçados pela garoa da ilusão, como um empurra o outro nesta cidade; às
vezes empurram por volúpia, noutras vezes por delicada ideia de sucessão. Eis a minha Sampa dos vigaristas.
Por Ricardo Novais
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