'A sofrida conversão de Santo Agostinho', de Fra Angelico, Museu Thomas Henry.
Canis qui memor Suzy. In memorian.
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‘Oh, Deus! Salve-me! Se ainda
penso tanto... Pois ainda assim, complexo calcular como o Criador anteviu a
existência. O mais vil escravo das paixões perniciosas descobre a certeza,
assim como eu agora, de que existo. Que sei que existo independente de qualquer
fantasia ou imaginação. Existo porque preparei a existência antes; ou existo
porque Alguém a preparou para mim. Não posso estar enganado quanto a isto, e,
se me engano é porque existo. Se eu não existisse não poderia me enganar.
Portanto, se me engano, logo existo!
Não posso estar errado diante do
exposto também, pois se estiver, mesmo que esteja errado, não poderia negar a
minha certeza de que estou errado; e logo, de que existo. Eu sei que existo, e
também sei que sei. E isso me causa grande alegria, pois não estou errado
quanto ao fato de existir e saber disto; e conquanto exista, logo sou capaz de
amar, aptidão que adquiri ou conquistei. Pois, mesmo que o amor por seja demais
ilusório, ainda seria um fato amar as ilusões.
Entretanto, de nada vale saber
que existo, de saber que sei que existo, senão saber se quem existe dentro de
mim sabe que eu existo. Se a ilusão do amor, que adquiri ou conquistei, não
souber para que seja este amor; de fato, de nada vale. Por mais que haja força
de existência e capacidade da ilusão do amor em abundância, não é o suficiente
se não soubermos: para o que serve esta força?
E como os rios que sabem o seu
curso, embora as cheias não saibam, a força fica armazenada e estancada em quem
a recebeu. Porque não sabemos para que seja e para que sirva a existência, e
para que seja e para que sirva a capacidade da ilusão do amor, forma-se, então,
lentamente, um movimento voluntário para dilatar nossa força-existencial e a
aptidão ilusória do amor. A isto chamamos de... paixão!
Estamos diante de conteúdos
preciosos, que não desvendamos nem dominamos o saber de suas forças; estagnadas
se acumulam, ao passo que se evadindo fluem pelo pensamento por oscilações
espontâneas. E seus caminhos são veementes de ardor, posto que sejam
instintivas e sem controle.
Quanto maior seja a
força-existencial e maior seja a capacidade da ilusão do amor armazenada, tanto
mais serão os artifícios da paixão. Contudo, quanto mais o movimento da paixão
conseguir canalizar, naturalmente, essas forças nobres, menos serão as
armadilhas de sofrimentos. Porém a paixão são os movimentos voluntários
espontâneos do pensamento, logo é de difícil influência, sendo árdua a sua
canalização. Portanto, o sofrimento sempre será relativo ao fato desencadeante
do pensamento e, naturalmente, inerente ao quantitativo da competência da
paixão no domínio das forças existenciais.
Os estoicos fingiram poder rir
das desgraças, serem insensíveis às paixões, às perdas matérias ou dos entes
queridos, serem indiferentes à morte, não se deixarem abater pela tristeza ou
pela dor, muito menos pelo prazer. Eles fingiram sentir todas as desgraças e
todas as glórias sem derramar uma lágrima ou sem dar um único grito. Seriam
sábios, se não estivessem fugindo ao fato que o homem existe com toda sua
condição humana.
Admitamos que o homem sábio não
exista, portanto, é incapaz de experimentar a perfeição e o heroísmo sem estar
acima do tempo; mas sabemos que somente Deus está acima do tempo – talvez por
isto mesmo digam que Ele é sábio. Enquanto isso, eu que sei que existo, sem
juízo, grito o mais alto que meu próprio silêncio, desesperadamente. Os rios
correm por meus olhos deixando marcas secas, e meu coração petrifica pelo
simples fato de não saber mais se ela ainda existe, e, de agora por diante, de
não saber se eu também ainda existo. ’
* 'O novo convertido'; capítulo XVI do romance 'O Boêmio', Ricardo Novais, Bookess, S. Paulo, 2010.
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