"O Leito de Morte", de Edvard Munch. |
A coisa mais extraordinária eu assisti
na calçada da praça do centro. Um mendigo estrebuchava, tossia e ria; de um riso
débil e constrangedor. Toda a gente estava ali, em plateia burlesca e
sorridente, mas as pessoas paravam rapidamente, apressadas que são pelas
tarefas cotidianas da indiferença humana. O sol, já alto entre arranha-céus, espantou
a garoa e fervia incolor a lama que servia de esquife ao moribundo. A cidade, tão
grande e até generosa, deu-lhe de esmola esplêndido leito de morte.
Rudes bocas maledicentes que
circundavam o pobre projeto de cadáver iniciaram um burburinho, a saber:
- Que tem ele?
- É cachaça! – gritou uma calça risca-de-giz.
- É droga! – retrucou um par de ancas de
vestido curto.
O mendigo morria sem fazer ruído
na frente da multidão alegre e desorganizada. A morte, a um canto, aguardava-o calma
e absoluta. Eu, ao mesmo tempo testemunha e personagem, assistia a todo o espetáculo
numa mistura de incredulidade e satisfação. Não julgue à toa, leitor! Há um segredo
pungente. De certo que sabe o grande prazer que dá estar livre do perigo exposto
a outrem; ai de mim, de ti, de nós; desgraça, só a alheia.
Por Ricardo Novais
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