Madalena Penitente, El Greco. |
Atrevido, recebi história de
escritora morta. A escritora morta era uma que tinha medo de morrer. Assim como
um bruxo, que não tinha tanto medo de morrer, a escritora morta que tinha medo
de morrer não sabia o que fazer com uma história de antes da Ponte Rio-Niterói;
então a deu a qualquer leitor. Sou leitor ocioso, como sabe, também não sei o que fazer
para narrar o conto de Jandira...
Ih, leitor! Estou me perdendo no
conto antes mesmo de começá-lo. Culpa da escritora morta, maldita! Sabe a qual escritora morta me refiro, leitor? Então não direi. Também me proponho agora, por questão de
compromisso com teus olhos que lêem, veja que consideração eu lhe guardo, a
contar a história de depois da Ponte Rio-Niterói. E nem digo que tudo se passa
para lá ou para cá, passa-se sim por baixo de alguma ponte.
Jandira é filha de Simão, o leproso.
Quando tinha oito anos incompletos de sabedoria, foi atropelada no sinal de
trânsito da esquina da cidade onde as ruas correm libertinas para abrigo debaixo da
ponte. Ponte suja. Farol de trânsito. Sinal de vida.
Do atropelamento, Jandira
sobreviveu com sequelas na perna direita. Pobre coitada! Hoje, aos dezesseis anos completos de indecisão e irremediavelmente coxa, vê a vida passar refletida nas
janelas escuras de automóveis que cruzam o mesmo sinal de trânsito da esquina do imponderável acidente. A correnteza das águas enigmáticas ainda é suja, e ainda mais libertina. Fluíste caudalosa, pula a coxa a vender balas e a
dignidade no palco de asfalto.
- Ê, Jandira, se não fosse tão distraída...
– ralha com ela o pai leproso – Podia dar melhor fruto, ser alguém na vida...
Mas você não viu o carro... Ô, Jandira! Oh, Jandira! Mas quem sabe, né? Vai saber...
A menina nada diz, é quase muda. Só pula, pula, pula. Só não pula da ponte, mas dá seus pulos embaixo dela. Ela não é feia, é manca. Um desperdício de alegria, talvez sirva de alvo a alguma pedra prepotente ou a algum crime afrontoso. Uma
pequenina sombra saltitando alquebrada por violentas máquinas de toda a cidade.
Cidade, cidade, cidade, emaranhado corrupto da vida, que maltrata e que ilude e
que engana, tanto.
Enquanto isto, do outro lado da
rua, religiosamente ao badalar do sino da igreja das Irmãs Carmelitas Descalças, a vitrine da grande loja de departamentos deixa à mostra, através da tela
plana da televisão com função interativa, a cara de bolacha do apresentador do noticiário sensacionalista das seis da
tarde: “Barbaridade! Duas crianças assassinadas na periferia da cidade, duas
meninas...”.
Jandira, tão logo ouve a asquerosa
manchete, torna ao ofício no sinal de trânsito da esquina da cidade onde as ruas
correm libertinas para abrigo debaixo da ponte; ela fica feliz por estar viva. Nem toda
prostituta vinga, pensa.
Quando a alma não encontra onde pousar, creio, há dúvida e até desespero. Tudo é cíclico desde antes, e será depois. A vida persistirá em nossas primeiras e últimas
ideias, como força letárgica. Que assim seja! Então, em tempo: caso tenha o infortúnio da vontade, caro leitor
irmão de Marta e Lázaro, lance algum adendo além da matéria da escritora
morta que tinha medo de morrer. Escritora morta... Maldita!
Por Ricardo Novais
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