A noiva Ester e a asma maldita

A noiva, 1886, do pintor paulistano José Ferraz de Almeida Júnior.

I - O encontro

Lineu estava num café de esquina do escritório, em pé no balcão, quando viu do outro lado da calçada uma garota elegante desfilar em direção à rua XV de Novembro. Observou quase paralisado a graça daquela moça, entortou o pescoço até perder aquela deleitosa visão por causa de outra dobra de esquinas. Ficou ainda ali, parado, rememorando consigo mesmo os momentos recentes e desconhecidos. Largou a xícara, largou dos pensamentos e tornou ao ofício rotineiro que lhe carimbava a vida.

O relógio apontou 18 horas. Saiu apressado em direção à Sé com ideia de pegar um vagão não muito cheio, coisa dificílima naquela estação àquele horário. No apertado cubículo, avistou a visão graciosa daquela moça da hora do café da tarde. Era ela, a poucos metros e ao mesmo tempo tão longe. Ela saltou na estação Paraíso, não era a sua, mas ele queria descer ali. Não conseguiu, entretanto. Desvencilhando-se do aperto, chegou à porta automática para saltar na estação seguinte. Saltou na Ana Rosa e pegou a composição no sentido oposto, precipitou no pátio da Paraíso, calculou, desceu as escadas rolantes correndo, em meio à multidão, viu a garota, atirou-se no seu encalço, quase como um maluco. Tropeçou num passageiro, esbarrou numa velha, mas alcançou a menina pouco adiante. Venceu uma pequena crise de asma nesta aventura. Ficou atrás dela, na fila em desordem para adentrar em outro vagão com destino à Paulista, provavelmente.

II - A conversa

Eram três talvez quatro estações, apenas. Calculando isto, Lineu puxou conversa:

- Que loucura a cidade, não?

- Por que está me seguindo? Não nos conhecemos, né?

Ele não sabia o que dizer, ficou pasmado. A moça percebeu o constrangimento de seu companheiro de transporte público:

- Não se preocupe, não vou chamar a polícia – disse ela sorrindo; um sorriso lindo, julgou ele. – Não estou zangada, é que sou prevenida contra assaltos ou pessoas inconvenientes...

- Perdoe-me o incômodo... Com licença... – ele ia se afastando para outro canto do vagão lotado, quando ela bradou:

- Fique! – ordenou amavelmente, e se apresentou:

- Meu nome é Ester...

- Muito prazer, o meu é Lineu.

- Certo Lineu, apenas me explique se já nos conhecemos...

Lineu não viu outra opção além esclarecer tudo, desde o início no café, contando sobre a esquina, o eventual reencontro no metrô e a inadequada perseguição àquela moça que tanto o havia impressionado desde o meio da tarde.

III - O namoro

Passaram-se os dias. Ester é convidada ao cinema: "Não quero que você confunda as coisas, Lineu. Tenho namorado!”. No entanto, dois meses depois os convites eram aceitos e o namorado mudou.

De mãos dadas ao noivo, Ester frequentava o café onde tudo começou. Feliz, avaliava Lineu como o melhor homem do mundo. Via nele o pai de seus filhos, uma casa grande e arejada na zona sul que contrastasse com qualquer apartamento minúsculo da região central da cidade. O sentimento alegre era do mesmo modo sombrio, pois constantes eram os ataques de saúde de seu nubente. Ela tremia imaginado a viuvez precoce e seus filhos órfãos de pai.

IV - O casamento

Tudo foi planejado como evento extraordinário. Enfim, o dia do matrimônio chegou para concretizar sonhos intensos.

A decoração do lugar escolhido aproveitava área arborizada de vasto terreno colina acima marcando a data. Exuberância, com todas aquelas mesinhas e pessoas que nunca tinham visto, todos comendo e bebendo, falando e andando com taças e copos nas mãos, felicitando a união e se escondendo, presumivelmente, do corte da gravata e do alvo sapato de salto alto.

Luxo desnecessário, só valia pela felicidade estampada na formosa face, da então noiva, agora legítima esposa. Tudo conforme o figurino, carro antigo de motor beberrão para trazer a nubente à porta da igreja e outro automóvel enfeitado arrastando latas vazias. Convidados saudando aos noivos, arremessando-lhes arroz cru e acenando-lhes em bons votos. Mau-gosto, dona leitora? Pois saiba que este evento foi a celebração do arremate de sonho de amor dos dois pombinhos. O contra-saldo foi a falta de novidade nas núpcias.

V - Os casados

O primeiro dia de casados amanheceu. O ar do chalé de bodas era fresco, agradável, mas Lineu sente algo estranho. Levanta-se da cama, procura a mulher, derruba uma cadeira, vai à varanda, não encontra sua esposa. Torna dentro do quarto, olha em volta, sem compreender, imagina que algo grave acontecia. Fulminante foi o ataque, faltou-lhe ar, como um louco, ele corre à janela, porém tomba ali mesmo. Ainda vê a mulher chegar com a cesta de frutas e flores nas mãos, desesperada tentando devolver-lhe à vida... Tarde demais. Lá dentro do quarto a recém-viúva olha o cadáver do marido, histérica, em cima da cama rasga o vestido de noiva.

Por Ricardo Novais
Conto publicado no livro Trem Noturno, S. Paulo, 2010, Bookees.
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