Vida, causa mortis

Dedico este texto à Maria Hilda de Leão,
Minha querida avó.


Emudeci. A morte venceu. E venceu a vida! Logo a vida, que sempre falou tão bem da morte, morrer assim sem avisar. Morreu porque viver é ato único. Embora a vida seja tão boa... todo mundo tem que morrer um dia, é ofício inevitável.

Ainda mais inevitável, no entanto, é saber que todo homem faz perguntas fascinantes, e que até confortam outros; é alento na angústia e reflexão na alegria. Caço aqui comigo que a sabedoria vem do encontro das paisagens de montanhas das Gerais, cheias de acolá, com a vista pouca acidentada das campinas do planalto bandeirante. Mas não sei. Certo mesmo é que a sabedoria vem de algum ambiente hostil.

Noutro dia, já faz alguns anos, li uma crônica de Rubem Alves, publicada num grande jornal do país, onde ele, brilhantemente, intrigou-me com suas perguntas inesperadas que massageiam tanto a nossa alma desavisada. Dizia ele, “(...) há dores que servem a nada. A dor da morte serve para qual ser humano?”. Nenhum, pensei. Embora sempre exista alguma serventia para a dor, mesmo a mais inesperada. Pois ao terminar a leitura daquele questionamento tão profundo, alcancei que a resposta pouco importavaA morte e a vida não são contrárias. São irmãs. E isto é um alívio danado, mais até do que outra compreensão universal.

Mas o diabo é que as notícias repentinas nos pegam de calça-curta. O coração fica apertadinho como o quê. A surpresa de uma mulher bonita dizendo que ama a gente é uma coisa muito boa, mas a surpresa de uma mulher soturna nos chamando no meio da noite para o sono eterno é assustadora.

Também eu tenho medo de morrer. E muito. Ora! Se a vida é tão boa... Vou me esforçando para viver fazendo perguntas sem obter as respostas. Do definitivo? Não quero nada definitivo, a não ser a redentora vontade da vida. Alguns não têm causa mortis por saberem viver, simplesmente retiram-se sem dar mais palavras. Deixam sim um gesto, um olhar e todas as palavras do passado; portanto, talvez carinhosamente de propósito, existirão para sempre nas retinas da memória, assim como existirão a casa velha, o café e o queijo oferecidos por uma pessoa muito querida, igual vovó.

Por Ricardo Novais

Cristina

Natureza morta com maçãs e romãs. - Gustave Courbet.

Vinha pela calçada do bairro, perto do colégio, quando li o cartaz: “Dê uma chance, você pode ter sorte”. Era um cartaz bobo, coisa de loteria, mas aquilo ficou em mim. Sorte não é coisa tão confiável, menos ainda se for de promoção. Continuei andando. Naquele tempo eu estava em dificuldades financeiras, era professor do ensino médio. Estava atrasado para a primeira aula do dia, ou da tarde, que já iniciara com cansaço e aborrecimento... Ah, sorte.

Cristina foi a primeira pessoa que vi quando cheguei à sala de aula. Linda! As outras ninfetinhas não a achavam tão bonita; e meus colegas me diziam doido. Doido? Cristina, espontânea, abria o sorriso mais bonito e iluminado desde a primavera de Cecília... Mas disto nada digo, leitor; é coisa da minha primeira morte.

Nunca é bom esconder um pensamento, no entanto, difícil é encontrar o tempo certo de dizê-lo; e assim, naquela tarde quase apagada pela memória, fui falar à Cristina uma ideia. Ideia que era menos minha que dela, pois ali era só ela quem poderia nos trazer a sorte.

- Oi, professor.

- Oi, tudo bem?  Quero te falar uma coisa...

- Fala, ué.

- É uma coisa besta, Cristina, mas acho que você deveria saber.

Sim, tinham vozes no silêncio; imaginou bem, dona leitora. Cristina estava impaciente, quase aflita; eu, absorto:

- O que eu devo saber? Fala logo, Eric!

- Está bem. Naquele tempo... Você me trouxe uma maçã?

Ela riu; de certo de nervoso. Continuei.

- É que já tem mesmo um tempo; logo que viramos amigos, logo no começo do ano, no começo mesmo, eu conversava com você e tinha vontade de te beijar...

Beijá-la. Cristina, à época, uma garota de dezessete anos incompletos com o dom do silêncio perturbador em meio ao burburinho de bocas juvenis com quilômetros de línguas balofas e felizes. Às vezes todo o barulho do mundo é menor que o simples e harmonioso silêncio. Mas era um silêncio maldito dos diabos! Quebrei-o.

- Estranho, né? Mas é verdade.

- Nossa! Sério? – ela disse num espanto contrafeito.

Não havia nada de sexual, leitor; menos de romântico, como pode arquitetar agora a leitora com mais inclinação à diabete. A coisa era tensa como acordar de um pesadelo terrível e perceber que a realidade é ainda pior porque se está sozinho. Eu nunca fui tarado e jamais romântico, caro amigo; até queria ser ou ter sido, mas não é o caso; é coisa de personalidade, ou falta. Cristina era ainda menos lírica, embora tivesse mais a essência da volúpia carnal de uma natureza imatura em batalha eterna.

- Ah, que nada. Você é meu professor... – ainda hoje posso vê-la me desconversando e passando sutilmente a língua, ora ágil e frenética ora passiva e dissimulada, sobre o lábio superior.  – Isto não vai mudar?

- Mudar? Poderíamos melhorar... Calma! Estou brincando, queridinha. Mas a culpa é sua, quem manda ter uma beleza tão inteligente... Mas deveria tentar passar de ano e largar o professor Carlos. Talvez tivéssemos sorte...

- Eu amo o Carlos! É coisa séria. Vamos nos casar assim que eu entrar na faculdade. Gosto muito de você, Eric; apesar de ser como amigo...

O diálogo foi banal, aconteceu nas nuvens um pouco antes da minha última morte de abnegação e do nascimento da patrulha da vida alheia. As nuvens são mesmo lugares bonitos e lustrados. É que da minha última experiência metafisica para cá aprendi a voar. De modo que não é sempre preciso ficar quieto para alcançar algum sonho; quebrar pratos, copos e garrafas são também coisas esplêndidas, por mais que os cacos fiquem machucando os pés. Sim, caro leitor; por isto aprendi a voar e a ter sorte.

Por Ricardo Novais
Publicado originalmente n'O Bule.
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