Ousadia

Foto Liliane Callegari.

A cabeça que não se erguia muito, mas que também não se deixava a ver só o chão, estava sempre escondida por detrás de alguma baia de escritório, pilastra de estação de trem, parede de prédio de banco, outras cabeças que também não se erguiam muito. Bonifácio era adepto da seleção natural, adaptava-se fácil à sombra dos outros. Não corria riscos, não errava nem acertava; poder-se-ia dizer que levava uma vida confortavelmente bovina.

Olhares atrevidos causavam calafrios em Bonifácio, pessoas sorrindo ao seu redor o aterrorizava. Vivia isolado, sozinho, sombrio por opção. Todas as palavras que dizia não ecoavam mais alto que o silêncio. Silêncio. Silêncio repentino ou de vários dias. Nem toda vida é esfuziante porque nem toda felicidade se compra no supermercado, filosofava consigo mesmo o parcimonioso Boni.

Mas se a vida não é tão esfuziante como aparenta nas fotografias das redes sociais, leitor, também está longe de ser previsível. Quando não se esperava mais nada de uma alma tão bovina, numa manhã ensolarada e bonita, Bonifácio cometeu sua maior ousadia.

Olhou-se ao espelho, engatilhou o revólver e atirou contra a própria cabeça, que não caiu nem erguida nem virada para o chão. Violentamente, apenas caiu.

Por Ricardo Novais
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