"Está morto: podemos elogiá-lo à vontade", conselho machadiano. |
Quando
dei por mim, estava bem-vestido e dentro do caixão, um esquife melancólico. Eu
observava as flores fúnebres murchando, minuto após minuto, e já pensava na
minha nova e confortável morada sete palmos abaixo da terra. Concluí disto que
a morte é um sono eterno e sem sonhos.
Minha
mãe chorava ininterruptamente ao lado do caixão, era um soluço alquebrado e
curto; meu pai tomava um café em copo de plástico. O clima era sombrio. No
atestado de óbito vinha escrito: “Morreu de ataque paralisante do miocárdio”. Ora,
essa é boa. O miocárdio foi o único órgão que se manteve firme, vivo até o fim.
Pobre miocárdio! E também é certo que se eu pensava era porque meu cérebro estava
em pleno funcionamento... Ou não? Não, não examinaram o meu cérebro – embora
árdua seja a tarefa de medir os pensamentos... E tudo pode ser mesmo um sono
eterno, mas talvez com alguns sonhos.
Ouvi
que seria translado ao cemitério. No fim, tudo é um campo de girassóis... Nunca
pensei que faria tal viagem, de mais de bilhões de quilômetros; ao menos não tive que pagar absolutamente nada pela passagem. Isto é quase boa promoção
de agência de turismo; de fato, uma pechincha! Sempre haverá alguém que te pague a morte; no meu caso, o patrocinador foi papai.
E assim foi o carro em cortejo, uma carreata funesta e enigmática.
Mas
a morte é tão surpreendente quanto a vida, leitor. Mal eu tinha
morrido direito e já recebi companhia, alguns defuntos classificariam a visita que recebi de indesejável: uns vermezinhos vieram ter
comigo.
-
Olá, amigo! Sou o escaravelho, mas pode me chamar de Cará. Muito prazer.
-
É? O prazer é teu, não vê que estou morto?
-
Sinto muito, acontece... Bem, amigo; mas viemos vê-lo porque vamos nos
alimentar de teu corpo; questão de sobrevivência; você entende, né?... Ah, mas
não se preocupe! Geralmente funciona assim: a comida nada sente; apenas
arrancamos um naco do presunto, comemos e vamos embora. Noutro dia voltamos;
outros vermes não podem vir comê-lo, apenas eu e meus companheiros
decompositores; seremos os donos de tuas carnes, de tuas entranhas; os outros vermes malditos que
procurem outro defunto para saciar a vida, ou morte! E quando der por conta, meu
amigo, já nada mais existirá de ti. Entendeu tudo?
-
Entendi sim, obrigado. – disse agradecendo a consideração da explicação e fazendo um pedido aos vermes. – Por favor, não dá para vocês esperarem um
pouco; quer dizer, ao menos até que eu esteja enterrado... Não quero ter
aspecto ruim no velório; compreendem?
-
Oh, sim, claro! Por enquanto só viemos mesmo lhe dar as boas-vindas. Já te
disse para não se preocupar...
De
repente o escaravelho fechou a horrenda face e raiou com os amigos:
-
Ei, senhor fungo, dona bactéria; agora não! Depois vocês comem; que gula!
-
Mas Cará... – ponderou o fungo. – É só uma lambidinha. Poxa morte! Estou
morrendo de fome...
-
Não! E basta! Não sabem o que é basta?
Basta,
foi tudo que eu soube da cadeia alimentar do imponderável. Aqueles vermes morriam de fome e eu
já estava morto; finado e encaixotado. Curioso, mesmo sem poder me mexer eu
percebia que aquele caixão era muito apertado. Meu pai deve ter economizado em
minha última morada... Um morto deveria ser enterrado em local grande e
arejado, algo parecido com a tumba de Jesus Cristo. Por que não dar espaço à
morte?
Não
aguentei. De repente, tudo se movimentou sem nexo e os objetos fúnebres giraram
descompassadamente, pareciam me perseguir, eu não vi mais nada; a não ser uma
luz clarividente e acolhedora. Fui à luz, mas uma mão desligou o monitor e outra fechou a janela.
Por Ricardo Novais
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