Rivalidade Rio-São Paulo

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A velha rivalidade Rio-São Paulo. Concorrência provinciana que, há séculos, açoitam seus povos? Duas cidades que não se bicam muito e, no entanto, são primas ou, quase, irmãs? Uma espécie esportiva de disputa eterna entre índios tamoios, os super-cariocas, contra tupiniquins, os super-paulistas? Uns partidários dos ferozes goitacás e tupinambás; outro grupo, mais gentil, só queria viver na paz natural de carijós ou de catequizadores. Ah, se tudo fosse tão lacônico como numa partida de futebol, mas briga-se por tão pouco... É, provável que sim. França e Inglaterra não iniciaram uma luta, de mais de século, por causa de lã? Os Estados do Paraná e de Santa Catarina não promoveram um sangrento conflito, na Questão do Contestado, por reivindicarem madeira? Conflito onde morreram mais de vinte mil homens, e usaram mais de vinte mil caixões. Caixões de madeira!

Sim, senhor leitor vizinho da casa 1 e dona leitora vizinha da casa 2, olhar para os lados espicaçará sentimentos diversos e uma ambição selvagem à discussão com o que é díspar do nosso direito...

É curioso; qualquer paulistano diria que sou vira-casaca. Mas minha identificação com o Rio de Janeiro vem justamente por causa do saudoso Torneio Rio-São Paulo. Fanático pela disputa ente futebolistas cariocas e paulistas, presenciei apenas a morte do torneio; os último anos, entre vivos e mortos. Vivos e mortos!

Lembra-me, por descuido, a memória a história de craque antigo do Clube de Regatas do Flamengo: Zé dos Prazeres, o gênio genioso. Isto é história velha que vovô contava nas tardes de sábado perto do Rio Pinheiros, quando este era parque florestal em São Paulo, com o cigarro à boca e a cerveja esquentando na mesa improvisada. Dizia ele que nem Garrincha nem Pelé foram páreos para o Zé dos Prazeres no Rio-São Paulo. Zé foi o maior do torneio, afiançava.

Coisas maiores, leitor. Coisas maiores! Afinal, tudo é tão decrépito como o depauperamento da reminiscência, finita.

O craque genioso nasceu entre os malandros cariocas do Morro dos Prazeres, zona central da cidade dos remotos goitacazes e tupinambás. Conhecia tanto a boemia aniquilante do Rio antigo como a crueldade dos bicheiros que mandavam na favela.

Zé dos Prazeres era sedutor, fazia o tipo galã de cinema. Mas a torcida adversária, percebendo logo as jogadas temperamentais, voluntariosas e indisciplinadas de Zé dentro e fora dos campos de futebol, fez campanha contra o desportista incompreendido. Tão depressa nas duas cidades surgiram os coros nas arquibancadas a tentarem desestabilizar o melhor jogador no torneio: “Mariquinha! Mariquinha! Mariquinha!”. Ele se afetava rápido. Batia em árbitro, espectadores, cronistas, brigava com Deus e o mundo, ofendia, sem distinção, rivais e colegas da própria equipe.

Quando o jogador enfurecia-se no gramado lá vinha o coro paulista: “Mariquinha! Mariquinha! Mariquinha!”. Ele ficava irascível; e, se o Flamengo tivesse vencendo, tanto melhor, porque ele iria fazer um gol de categoria e raiva. Mas se o rubro-negro estivesse perdendo o time da Gávea acabaria sem Zé dos Prazeres, pois ele seria expulso por agressão física ou moral indiscriminada.

Em meados de algum ano passado como fumaça de bule de chá, segundo as também já tão longínquas palavras de vovô, o gênio se desentendeu com o presidente do clube, clube que tanto amou. Numa excursão pelo Rio, a Internazionale, de Milano, time da moda no velho continente à época, se interessou pelo jogador. Zé dos Prazeres, o gênio genioso, foi vendido. Mas ele não aceitou ficar longe de sua gente. Na temporada seguinte, sem poder jogar, foi assistir a abertura do torneio Rio-São Paulo: Santos 7 x 1 Flamengo. Era de ver a cena em pleno Maracanã, o craque genioso embriagado entre geraldinos de incrédulos rostos de todas as cores e todas as idades, de cabeça baixa, chorando entre seus comparsas, agarrado a um poste das gerais do velho e não menos saudoso Maraca, sem acreditar na humilhação imposta pelo time paulista ao seu clube de coração.

Amor? Desamor? Abandono? Zé dos Prazeres morreu de tristeza, num hospício na cidade do Rio de Janeiro. Contudo, não sejamos tão enfáticos como os cronistas esportivos! Não cabe neste texto. Dir-se-ia aqui apenas que o futebol é só um artístico e inesperado reflexo da vida.

Ademais, não saberia afirmar, caro amigo leitor-torcedor carioca e queridíssima dona leitora-fanática paulista, se esta história de meu velho avô, jaz calado pelo peso da eternidade, é verdadeira; de certo que não. Mas diria que sim; pois que o craque das mais belas expressões corporais nos estádios, que teve afetada a vida de glórias e desgraças, promoveu a mais sútil e ingênua rivalidade entre todas que existem entre o Rio e São Paulo – duas cidades bem perfumadas, e quase irmãs.


Por Ricardo Novais
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