Acervo: Memorial Penha de França. |
Contei três mentiras ao chegar a minha
casa. As duas primeiras, não me recordo mais. Lembro-me da mentira que contei
por último. Minha mulher não me deu ouvidos, não importava. Os casais jovens
têm uma amizade suscetível a tudo, exceto à falta de dinheiro.
Cheguei a minha casa antes da novela
das nove terminar, eu estava fedendo a uísque vagabundo e à cerveja. Não fumo,
mas estava também empesteado do cheiro daqueles cigarros das montanhas. Abri a
porta e já fui dizendo:
- Boa noite, amor! Eu estava... – Não
me lembro do que eu disse, lembro-me só da conclusão. – Estou indo fazer as
malas, pegar minha escova de dente; e adeus!
Era mentira. Eu não ia embora, nem ia
escovar os dentes naquela noite. Minha mulher escutou o que disse; ela tirou os
olhos da novela, mas apenas olhou-me de canto e tornou a digitar na rede social
algum comentário da dramaturgia televisiva. Foi só isto o que ela fez; nada
mais.
Sabe, leitor, tudo que um homem
necessita na vida é de amor, e um pouco de cerveja. Tomei duas cervejas e
quebrei as garrafas na pia da cozinha. Fez um estrondo magnífico. Fui à varanda
e fiquei esperando que alguém aparecesse. Ninguém apareceu. Há quem diga que o
amor é uma coisa que nos faz feliz. Perdoe-me, amiga leitora mais romântica,
mas eu acho que é mentira. O segredo da vida é o esquecimento.
Joguei-me de roupa e tudo, inclusive
sapatos, na cama limpa. Meus pensamentos sim, estes eram sujos. Mas minha
mulher não veio. Adormeci. Quando acordei, eram vinte para as sete da manhã, levantei-me,
tomei banho, escovei os dentes. Vesti-me rápido, saí do quarto e vi que minha
mulher havia dormido no sofá; ela ainda estava de boca aberta com a respiração
ofegante. A televisão passou a noite com ela; nem mesmo a rede social, sua tão
íntima, mereceu alguma reclamação de nossa vida conjugal. Primeiros raios de
sol saiam-se já da vidraça frontal do apartamento; transmitiam-se já as
primeiras preocupações no noticiário matutino.
A diarista me ofereceu café, tomei-o
sem açúcar. Nada comi. Escutei a mocinha do noticiário da tevê dizer que a
Marginal não era recomendável àquela hora. A cidade inteira não era
recomendável, em mais hora nenhuma; pensei. Pensei; nada disse.
Na Marginal, lembrei-me da mocinha do
noticiário. Ela não estava ali no meio daquele congestionamento sincronizado. Esqueci-me
dela rapidamente. De repente, sem sentido, arranquei com o carro; nada pensei.
Foi um estrondo magnífico. O motorista de uma caminhonete de altíssima
suspensão desceu quase instantaneamente, furioso:
- Olha aí o que você fez, cara! Está
louco, meu? Acabou com a minha traseira... Olha o para-choque; e agora, meu?
Eu nada disse. Pelo hálito, aquele
motorista da caminhonete não tinha escovado os dentes naquela manhã, mas
poder-se-ia calcular que tinha fumado algum cigarrinho das montanhas e tomado
café sem açúcar. Só vi quando ele puxou o revólver, acho que disparou; mas não
me lembro de mais nada.
Por Ricardo Novais