Sofrimento

Pintura de Andreas Mantegna (1460).

Há uma pessoa que sofre muito, mas não está mais na idade de sofrer. Quase todas as coisas a fazem sofrer, exceto as coisas próprias do sofrimento. Não, não está morta esta pessoa, não ainda. Também não padece de doença grave, dívida irrecuperável ou amor completamente despedaçado. No entanto, como sofre este ser desgraçado.

Não sabe como é triste, leitor, sofrer por coisas que não são de sofrer. Mas como? Como? Deve sofrer tanto? Não lhes respondo com certeza, amigo e amiga que me leem, mas tamanho sofrimento parece-me fora de hora e de causa. Sofrer por sofrer, sofrer por ofício. Eis o imponderável.

O conto é tão calmo, apesar de tamanha aflição e sofrimento estéril, que o encerro antecipadamente neste parágrafo, revelando, entretanto, a identidade deste sofredor sem causa e efeito: és tu, leitor, que sofre na mesma medida e propósito do autor que vos escreve.

Por Ricardo Novais

É só o fim... Fim do mundo


21 de dezembro de 2012.

Por Ricardo Novais

Tinha que fazer o almoço. Por quê? Final de tarde, já. Maldito final de tarde! Fico com fome. Foda-se! Meus netos não me visitarão hoje, nem mesmo para comerem bolo de cenoura. Pestinhas! Sou velha. Canso fácil, de tudo. A velhice tem dessas coisas, moleza ao vespertino.
Silêncio.

Deixo-me virar no sofá. Sofá velho, duro. Sofá duro do cacete! Já pedi ao Zé que venha ver este sofá. O Zé é pedreiro e o “faz tudo” do prédio. De vez em quando ele vem aqui e faz o serviço, me fode. Este é outro mal da velhice, ninguém quer te comer.

Esqueço o almoço, já é quase jantar. Esqueço o sofá, duro. Esqueço o Zé, pica dura. É hora do jornal nacional.

“E atenção!” – diz o almofadinha do noticiário – “As primeiras notícias do fim do mundo chegam das Ilhas Cayman. Nossos correspondentes estão...”.

Puta que pariu! Ilhas Cayman?! Onde é que fica essa porra? Ah, deve ficar perto da Argentina... Esses argentinos de merda!

Começou a novela. Novela, sem graça. Vou tomar banho. Não tem nada que se fazer. É só o fim. Diante do espelho, meu rosto me é estranho. Este rosto conta todas as minhas idades... Idades que nunca quis ter. Acaricio então as minhas grandes mamas caídas; elas parecem duas jacas moles que foram renegadas no Ceasa, ou pior que isto. Todo meu corpo caído, um horror. Fico horrorizada. Que a vida fez com você, Perpétua?, pergunto-me em frente à imagem refletida no espelho qual não desejo reconhecer como sendo a minha. Forço então uma lágrima, que é tão seca, que não vem. Horrorizada. Torno a ficar horrorizada. Não há nada que se fazer. É só o fim. No chuveiro, resta-me fazer os caminhos que o Zé não quis percorrer.

Ao sair do banho, ligo o tocador de música que ganhei de minha filha caçula da última vez que ela se dignou a vim me visitar; visita de médico, de risinho anêmico; visitinha tão rápida que já fazem seis meses... Toca numa canção do Roberto Carlos. Sempre achei o Roberto Carlos meio veado. Ouço a voz dele, fico triste. Já fazem trinta anos que... Não há nada que se fazer. É só o fim. Deve mesmo ser o fim do mundo, como andam dizendo.

Porra! Bem agora que, finalmente, o Corinthians conseguiu vencer a Libertadores e Mundial... Ah, foda-se! É bom morrer no fim do mundo, ninguém deixa nada para filho da puta nenhum; exceto àquelas pessoas que têm barganha a receber para depois do fim do mundo, pois, ora!, a morte também é negociável. Cristo já disse: “Vale tudo, só não vale dar o cu”. Está escrito lá na Bíblia. É por isto que sei que vou para o inferno, eu já dei muito o cu. E, agora, é hora do juízo final. É o Apocalipse do planeta. Planeta de parasitas que dão o cu. Para o diabo, todos! É fim da moralidade moldada à verve prazer.

A canção continua tocando. O resto todo é silêncio, quase eterno.

Triste fim. Ainda com a ideia da finitude de todas as coisas, caminho a passos moribundos pelo corredor da sala e... Minha Nossa Senhora! Vejo como a minha camisola puída combina certinho com a imensa toalha rendada da mesa de jantar. Mesa desgraçadamente redonda. Cadeiras descascadas e escavacadas pelo tempo, e sem forração desde que a bunda de meu falecido traste sentou-se ali para beber seu último gole de seu uísque da 25 de Março. Eu mesma que o servi. Velho traste! Para ele eu nunca dei o cu.

Ih, que perturbação! Preciso de um copo d’água. Vou à cozinha. Tenho as formas da jarra d’água em cima da pia a aguentar resignada a goteira da torneira frouxa. Minha simetria com o armário de porta quebrada e fechadura barulhenta é espantosa. A fruteira rouba de mim o pouco brilho que me resta. O azulejo sujo e trincado é translúcido como o portal do inferno; mas eu já sei como é o acesso ao inferno, já o conheço porque escutei muitas vezes sermão que padre joga aos fiéis nas missas de domingo. Distraída a pensar no terrível além-mundo, súbito, percebo é que estou com a aparência, física e metafísica, do encanecido fogão de seis bocas; esquento superficialmente, mas falta-me gás. Sobra-me gordura e sujeira pelas rachas. Aí está, último leitor, deixo esta ser a minha mensagem de despedida: vivi como um objeto, doente, e morta.

Desequilibrada por tormento extremo, e eterno, eu fujo da cozinha. Não antes de perceber que a geladeira poderia muito bem ser minha irmã gêmea de alma. Fria. Abro a portinhola do freezer e pego a garrafa semicongelada de vodca. Aflita. Tomo uma dose dupla. Acendo o último cigarro para aguardar com redentora paciência ao fim do mundo. Entretanto, antes que a fumaça empesteie o apartamento todo, o Roberto Carlos é abruptamente interrompido pela voz alarmante de minha vizinha:

- Perpétua! Perpétua! – grita Mariana através da fresta do basculante da aérea de serviço.

- Fala, velha louca!

- Viu, menina? Estão falando que o mundo está acabando...

- Ah, bobagem!

- Sei não...

- Fala logo, que você quer?

- É que acabou o pó de café daqui de casa, Perpétua; você tem aí um pouquinho para me emprestar? Estou fazendo café para o Zé. Depois te devolvo.

FIM

 * Conto publicado originalmente na revista literária O Bule.
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