É só o fim... Fim do mundo


21 de dezembro de 2012.

Por Ricardo Novais

Tinha que fazer o almoço. Por quê? Final de tarde, já. Maldito final de tarde! Fico com fome. Foda-se! Meus netos não me visitarão hoje, nem mesmo para comerem bolo de cenoura. Pestinhas! Sou velha. Canso fácil, de tudo. A velhice tem dessas coisas, moleza ao vespertino.
Silêncio.

Deixo-me virar no sofá. Sofá velho, duro. Sofá duro do cacete! Já pedi ao Zé que venha ver este sofá. O Zé é pedreiro e o “faz tudo” do prédio. De vez em quando ele vem aqui e faz o serviço, me fode. Este é outro mal da velhice, ninguém quer te comer.

Esqueço o almoço, já é quase jantar. Esqueço o sofá, duro. Esqueço o Zé, pica dura. É hora do jornal nacional.

“E atenção!” – diz o almofadinha do noticiário – “As primeiras notícias do fim do mundo chegam das Ilhas Cayman. Nossos correspondentes estão...”.

Puta que pariu! Ilhas Cayman?! Onde é que fica essa porra? Ah, deve ficar perto da Argentina... Esses argentinos de merda!

Começou a novela. Novela, sem graça. Vou tomar banho. Não tem nada que se fazer. É só o fim. Diante do espelho, meu rosto me é estranho. Este rosto conta todas as minhas idades... Idades que nunca quis ter. Acaricio então as minhas grandes mamas caídas; elas parecem duas jacas moles que foram renegadas no Ceasa, ou pior que isto. Todo meu corpo caído, um horror. Fico horrorizada. Que a vida fez com você, Perpétua?, pergunto-me em frente à imagem refletida no espelho qual não desejo reconhecer como sendo a minha. Forço então uma lágrima, que é tão seca, que não vem. Horrorizada. Torno a ficar horrorizada. Não há nada que se fazer. É só o fim. No chuveiro, resta-me fazer os caminhos que o Zé não quis percorrer.

Ao sair do banho, ligo o tocador de música que ganhei de minha filha caçula da última vez que ela se dignou a vim me visitar; visita de médico, de risinho anêmico; visitinha tão rápida que já fazem seis meses... Toca numa canção do Roberto Carlos. Sempre achei o Roberto Carlos meio veado. Ouço a voz dele, fico triste. Já fazem trinta anos que... Não há nada que se fazer. É só o fim. Deve mesmo ser o fim do mundo, como andam dizendo.

Porra! Bem agora que, finalmente, o Corinthians conseguiu vencer a Libertadores e Mundial... Ah, foda-se! É bom morrer no fim do mundo, ninguém deixa nada para filho da puta nenhum; exceto àquelas pessoas que têm barganha a receber para depois do fim do mundo, pois, ora!, a morte também é negociável. Cristo já disse: “Vale tudo, só não vale dar o cu”. Está escrito lá na Bíblia. É por isto que sei que vou para o inferno, eu já dei muito o cu. E, agora, é hora do juízo final. É o Apocalipse do planeta. Planeta de parasitas que dão o cu. Para o diabo, todos! É fim da moralidade moldada à verve prazer.

A canção continua tocando. O resto todo é silêncio, quase eterno.

Triste fim. Ainda com a ideia da finitude de todas as coisas, caminho a passos moribundos pelo corredor da sala e... Minha Nossa Senhora! Vejo como a minha camisola puída combina certinho com a imensa toalha rendada da mesa de jantar. Mesa desgraçadamente redonda. Cadeiras descascadas e escavacadas pelo tempo, e sem forração desde que a bunda de meu falecido traste sentou-se ali para beber seu último gole de seu uísque da 25 de Março. Eu mesma que o servi. Velho traste! Para ele eu nunca dei o cu.

Ih, que perturbação! Preciso de um copo d’água. Vou à cozinha. Tenho as formas da jarra d’água em cima da pia a aguentar resignada a goteira da torneira frouxa. Minha simetria com o armário de porta quebrada e fechadura barulhenta é espantosa. A fruteira rouba de mim o pouco brilho que me resta. O azulejo sujo e trincado é translúcido como o portal do inferno; mas eu já sei como é o acesso ao inferno, já o conheço porque escutei muitas vezes sermão que padre joga aos fiéis nas missas de domingo. Distraída a pensar no terrível além-mundo, súbito, percebo é que estou com a aparência, física e metafísica, do encanecido fogão de seis bocas; esquento superficialmente, mas falta-me gás. Sobra-me gordura e sujeira pelas rachas. Aí está, último leitor, deixo esta ser a minha mensagem de despedida: vivi como um objeto, doente, e morta.

Desequilibrada por tormento extremo, e eterno, eu fujo da cozinha. Não antes de perceber que a geladeira poderia muito bem ser minha irmã gêmea de alma. Fria. Abro a portinhola do freezer e pego a garrafa semicongelada de vodca. Aflita. Tomo uma dose dupla. Acendo o último cigarro para aguardar com redentora paciência ao fim do mundo. Entretanto, antes que a fumaça empesteie o apartamento todo, o Roberto Carlos é abruptamente interrompido pela voz alarmante de minha vizinha:

- Perpétua! Perpétua! – grita Mariana através da fresta do basculante da aérea de serviço.

- Fala, velha louca!

- Viu, menina? Estão falando que o mundo está acabando...

- Ah, bobagem!

- Sei não...

- Fala logo, que você quer?

- É que acabou o pó de café daqui de casa, Perpétua; você tem aí um pouquinho para me emprestar? Estou fazendo café para o Zé. Depois te devolvo.

FIM

 * Conto publicado originalmente na revista literária O Bule.
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