San-São. Belo futebol. Que pena!

Imagem do site Canelada F.B. 

Meus caros torcedores,

Finalmente, sim, finalmente chegou ao fim a novela 'Um Ganso que deseja ser Cisne'. Não houve mocinho nem bandido, apenas egocentrismo e jogo de interesses por todos os lados.

O ego maior é do jogador, claro; lembro-me de quase todas as entrevistas de PH Ganso, quando ainda 'craque santista': "Vou voltar a jogar o meu belo futebol", sempre dizia. Um sujeito que se faz um autoelogio é digno de pena – sem trocadilhos galináceos. Para o torcedor fanático santista um pouco mais coerente, já vai tarde; mas para aquele fanático peixeiro mais enfático, haverá o recurso das vaias e das moedas para ajudar o ‘futuro’ craque Cisne a demonstrar seu belíssimo futebol no Morumbi.

Ah! Mas o jogo de interesses, ah, este é todo dos clubes. Um San-São do capeta!

O Santos FC, talvez o clube mais tradicional do futebol mundial em todos os tempos, tentou chantagear, enganar, enrolar, encerrar a vontade alheia; enfim, coisas que, em certo sentido, mancharam o manto alvinegro tão sagrado. Coisas da bola, leitor-torcedor, coisas da bola; e a bola pune.

Já o São Paulo FC, apenas se utilizando de sua costumeira atitude de aliciar o talento alheio, foi digno de pena – outra vez, sem trocadilhos entre aliciamento e galináceos. Como um clube tão grande como o Tricolor do Morumbi, com um grande CT, de tão grandes presidentes/dirigentes, de tão grande torcida, enfim, de tão grande..., não consegue formar suas próprias revelações desde meados da década de oitenta? – Ao que consta, Lucas foi revelado na zona leste paulistana por aquele time da Marginal, 777, além de ser craque duvidoso; Kaká é uma falácia... Ah, claro, tem o Brenno, né? O craque incendiário... Sinal que para ser grande de fato tem que conquistar muita tradição; e tradição é formada pelas atitudes que se toma; quem sabe daqui a duas décadas ou mais, quem sabe...

Penso que os dois clubes são gigantescos, mas as diretorias tiveram atitudes de times pequenos (ou de várzea mesmo). O alvinegro pela falta de sensibilidade prática da situação burlesca da qual vivia, há coisas que não vale a pena se passar na vida; e o tricolor pela falta de respeito (ou inveja) ao trabalho alheio e filosofia futebolística do rival, há coisas que não se deve fazer na vida.

Pior que o futebol, que assistiu um de seus capítulos mais deprimentes, é a crônica esportiva, sempre a utilizar o esquema tático dos oportunistas; mas mais vil ainda é a história de um homem que virou apenas uma página na vida, ou um lance.

Um abraço, caros torcedores. Belíssimo futebol.

Por Ricardo Novais


* Texto publicado originalmente no site de esportes A bola e no espaço de leitores do blog Terceiro Tempo.

O transtorno cotidiano

"Caneta tinteiro dentro de um velho Código Penal". [Imagem de arquivo].

17º andar do Submarine Tower Center. Doutor Francisco Morganti desceu do elevador, deu um leve sorriso cumprimentando outros dois executivos que seguiriam para mais alto no edifício high tech e deu às costas. Caminhou pelo longo corredor cheio de saletas fechadas por portas de vidros, dobrou à direita, percorreu algumas baias abertas de departamentos e enfiou-se em sua sala: "Doutor Francisco Morganti, departamento jurídico", lia-se na porta de vidro fosco claro.

Mal conseguiu estender o paletó risca-de-giz azul-marinho no encosto da cadeira para sentar-se, alguém bateu na porta.

- Entre.

- Bom dia, doutor Francisco! A reunião está marcada para dez e meia, tudo bem?

- Dez e meia? Hum... Tudo bem. Obrigado.

Senhorita Clarissa o avisou que a sala de número 14 já estava separada para o evento e que teriam entre vinte ou trinta associados, boa plateia, participando da apresentação; porém, apenas três ou quatro receberiam efetiva participação nos lucros da empresa ou venceriam campanhas e ganhariam comissões. Ela deu às costas para sair. Ele ainda fixou um pouco os olhos na bunda dela; era um rabo igual ao do Pato Donald, só que de saia social, mas era espetacular, pensou, embora os tornozelos parecessem muito frágeis.

Doutor Francisco olhou no relógio de pulso analógico, oito e quinze da manhã. Respondeu dois e-mails sem importância, brincou com o anel de advogado em pedra de rubi natural que usava no dedo, verificou o cronograma oficial da reunião fazendo breve comparativo com o que tinha sido fraudado, pegou de duas ou três petições, mas logo as largou. Resolveu descer para tomar um café-da-manhã que fosse melhor do que o servido no escritório, o dia seria longo e ele precisava começá-lo bem. Levantou-se, vestiu o paletó, saiu da sala, sorriu à senhorita Clarissa, percorreu o caminho de há pouco e sumiu na multidão do elevador.

No café, estressou-se. Procurou se sentar perto da janela, com visão para a avenida apinhada de gente de todas as idades e cores. Distraiu-se. Trouxeram-lhe o cappuccino com uma fatia grande de bolo de cenoura, lembrou-se de sua mãe. Sim, caro leitor; por vezes, as coisas bucólicas trazem os pais à memória. Mordeu uma maça, sorveu toda a xícara e pousou os olhos numa moça do outro lado da calçada. Estava longe, mas ela pareceu ter-lhe visto, deu um sorriso debochado e atravessou a avenida na faixa de pedestres. Passou em frente ao café, mas não entrou. O reflexo do corpo dela no vidro da loja lhe iluminou o dia. Doutor Francisco, congelado à mesa por alguns segundos, segurando a maça mordida, ficou admirando aquela mulher de olhos de lascívia, enfiada em um escandaloso vestido vermelho curtíssimo, cor do pecado, cabelos ondulados esvoaçantes, em chamas por cima do salto alto, a andar um pouco descompassada calçada afora, elegante sem nem ao menos olhar para trás. Sem saber bem do por que, ele resolveu segui-la.

Pagou a conta na loja apressadamente, mas tinha muita gente à sua frente. Pisaram-lhe o pé. Sujou o sapato italiano. Não ligou, saiu em desabalada carreira, como se fosse ir atrás de um cavalo da sorte no hipódromo. No entanto, não conseguiu identificar o destino da moça dos olhos de lascívia; de repente, numa fração de segundo, julgou que ela havia entrado em um táxi no sentido do centro da cidade. Deu sinal a outro táxi e entrou na cabine, ofegante, embora não fizesse muito calor naquela manhã.

- Siga aquele táxi! – ordenou ao motorista. Ah, não tire sarro, leitor! Diga se também nunca tiveste a vontade de se sentir como um ator de filme B de ação em Nova Iorque ou personagem de novela no Leblon?

O taxista parou na Avenida São Luís. Ele desceu por trás, foi à porta do carona, pagou ao motorista com uma nota de cem e este lhe sorriu arrancando com o carro semáforo vermelho adentro. A mulher foi andando, um andar noturno, embora fosse claudicante dia; em nenhum momento ela olhou para trás ou para os lados. Eram nove e vinte da manhã. O sol não conseguia vencer a garoinha fina, céu cinza de nuvens roxas. Na Ipiranga, ela sumiu. Doutor Francisco ficou com os olhos perdidos dentro da multidão, resolveu entrar em um cinema. O cheiro de urina era insuportável, sentou-se em uma cadeira nos fundos da sala. A plateia era pouca, e esparsa. Lá dentro estava quente, muito quente, ar-condicionado desligado, ele tirou o paletó e ficou o segurando sob os joelhos. No telão passava um filme dos anos setenta, ou antes, com imagens muito ruins, onde se estrelava uma atriz nua, que não deveria ter mais que quinze anos de idade na época, fazendo sexo explícito com um crioulo carioca usando dentes de ouro.

Em certo momento, o filme passou a ares rodriguenianos. No telão se via dois homens se beijando e se tocando, e o crioulo transando feito um animal com a menina. Doutor Francisco então reparou que na sala não tinha nenhuma mulher assistindo a sessão, só homens aparentemente se masturbando. Na primeira fileira um sujeito masturbava o outro; depois eles trocaram, e um deles abaixou bem a cabeça no colo de seu colega sumindo do campo de visão; apenas os sapatos deles escorregavam frenéticos no carpete escuro e cheio de porcarias.

Doutor Francisco, que era advogado nascido e criado nos foros paulistanos, tinha fama de conservador dos bons costumes da cidade; ele percebeu que um expectador trocou de lugar, depois trocou novamente e estava a uma poltrona de onde ele estava sentado. Tinha cara de tarado, ou de louco, maluco. O advogado se levantou, vestiu o paletó e foi ao banheiro; o tarado veio atrás.

A latrina estava muito suja de secreções fisiológicas de todo tipo, deu-lhe ânsia de vômito. Ele preferiu usar o mictório, usou-o por uns cinquenta segundos, sacudiu-se e fechou a braguilha; ao virar-se para sair, deu de cara com o tarado, que, subitamente, beijou-lhe na boca. Doutor Francisco deu um violentíssimo murro bem no meio da cara do beijoqueiro, que deu um grito, menos efeminado do que afetado, de horror.

- Ei, peste! Peste dos infernos! Não quer? Não precisa bater, meu! – protestou o tarado que tinha um sotaque carregado, provavelmente oriundo da Bahia; e, imediatamente, ele sobrepôs sua mão esquerda em seu lábio superior percebendo e analisando o ferimento que acabara de sofrer.

- Você me beijou, seu nojento! – bradou o advogado, apresentando modos eugenistas. – Você me beijou... Está louco? Desgraçado! Nojento! Raça ruim!

Doutor Francisco xingava o tarado e o esmurrava sem piedade. Socou-lhe a cabeça utilizando como arma o anel, com pedra de rubi natural na ponta, qual usava no dedo do meio. Também lhe deu cotoveladas nas costas, na boca do estômago. O homem caiu no chão imundo. Recebeu chutes no rosto, na fronte. O advogado tirou uma caneta tinteiro de estimação do bolso da camisa e cravou-a na testa do tarado maluco, retirou-a e fincou-a novamente, duas, três vezes. “Raça ruim! Raça ruim! Baiano nojento!”, gritava a cada golpe, mas eram gritos mentais, em silêncio, estava justificando-se consigo mesmo. A caneta era extremamente pontiaguda, revestida de metal, tinha a forma de um pequenino canivete. O homem despiu-se de sua tara e chorou por piedade, mas o advogado não teve clemência. Furou-lhe o olho esquerdo, rasgou-lhe a pele da mandíbula. Pisoteou-lhe o órgão genital com raiva, esmagando-o dentro das calças íntimas. Naquele banheiro fétido, estava sendo lida a sentença, sem indulto. O tarado não ofereceu resistência; ele era um sujeito de estatura mediana, calvo e mulato, mas nem todo o sangue que lhe escorreu da fronte foi capaz de lhe tirar a palidez do semblante. Em questão de minutos, foi julgado e aniquilado no cotidiano da sociedade.

O advogado lavou as mãos em água corrente, retirou do dedo o anel com pedra de rubi o colocando em cima da pia, esfregou-se e enxugou-se com um lenço cândido de cetim que tirou do bolso da calça, limpou também os sapatos italianos, percebeu que a mão direita estava um pouco machucada, enrolou a caneta mortífera no mesmo lenço a enfiando no acolchoado interno do paletó, recolocou o anel no dedo do meio e saiu do cinema andando calmamente. Deu sinal a um táxi, ordenou ao motorista que o levasse à igreja Nossa Senhora da Conceição. No trânsito, enviou uma mensagem através da internet para a senhorita Clarissa lhe pedindo que adiasse a reunião para duas e meia da tarde, depois do almoço.

Ajoelhado diante do altar da Nossa Senhora da Conceição, lembrou-se de sua mãe, fez o sinal da cruz e começou a rezar:

Mãezinha,

Esta cidade é pecaminosa. Homens negros com dentes de ouro bolinam meninas, crianças. Há pederastia, prostituição, crime e corrupção por todo o lado. O diabo tomou conta de toda a cidade. A população quase inteira é libidinosa. Tenho pensado muito em me mudar daqui, ir embora para não voltar mais a esta terra. Quem sabe ir morar na Europa ou nos Estados Unidos; eu tenho procurado outro emprego fora daqui. Que Deus me livre do mal e do pecado.

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.”.

Saiu da igreja, pegou outro táxi, desceu em frente ao Submarine Tower Center e subiu até o 17º andar. Caminhou entre olhos sem rostos escondidos atrás dos vidros foscos, percorreu as indiferentes orelhas mal-lavadas por baixo das baias verdes e avistou a senhorita Clarissa com o mesmo sorriso leve que a nada significava, exceto ao Pato Donald. Trancou-se em sua sala: Doutor Francisco Morganti, advogado executivo. Trocou de terno risca-de-giz azul-marinho, banhou-se do melhor perfume de madeira, improvisou um curativo nos lóbulos da mão machucada a fim de esconder os ferimentos, tirou da estante um velho Código Penal para guardar a caneta mortífera e conferiu as horas no relógio de pulso. Ainda eram onze e meia da manhã. Resolveu descer novamente, precisava almoçar. "A tarde será longa", pensou metido consigo, calculando mentalmente os passos que daria na reunião onde iria apresentar o cronograma fraudado aos outros homens de valor, "preciso estar bem!", concluiu.

No restaurante de esquina, olhou para a televisão ligada no noticiário esportivo, mas preferiu se sentar sozinho no canto de uma grande janela de vidro. Tinha a mesma visão de mais cedo da avenida apinhada de gente de todas as origens. A garoinha tinha cessado, mas o céu cinza não trazia maiores esperanças. O garçom lhe trouxe o almoço: macarrão com queijo, carne empanada com farinha de trigo, salada de cenoura em molho de tomate e uma taça de vinho italiano. Lembrou-se de seu pai.

Por Ricardo Novais
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