Consultório médico


Leitor, já teve saudade do passado? Mas não falo da depressão advinda da contemplação da vida alheia. É uma saudade imaginária, tão imaginária que se torna real.

Quatro horas da tarde, sol. Uma bela tarde. Encontro minha mulher. Ela é gostosa, mas não sei se ainda gosto dela. Às vezes, a companhia de alguém é melhor do que estar sozinho; concorda? Quem está sozinho está sempre em má companhia.

- Juliano? Você está atrasado, meu!

Um grito alto, eu não disse nada. Naquele momento, eu estava de saco cheio. Foi difícil sair mais cedo do trabalho para ir ao maldito médico que atestaria minha filantrópica herança ou minha desgraça eterna: um filho. Os ginecologistas são os humoristas da medicina, reduzem nossa vida ao deslumbramento e retiram, habilmente, o dinheiro do nosso bolso.

- Deite-se com a barriga para cima, dona Adriana. – disse o ginecologista rindo, mecanicamente, e dirigiu-se para o radiologista. – Vamos já fazer os procedimentos...

Enquanto uma enfermeira melecou todo o ventre, o casulo do bebê, com um gel de aspecto plástico e o radiologista ajustou o aparelho de exame ultrassonográfico, Adriana não parou de falar. Perguntou o que eu achava da gravidez, se estava tudo bem comigo, o que eu estava sentindo, se eu preferia menino ou menina, se eu estava feliz, com medo, se seríamos bons pais; um humor melancólico se apossou de mim. Posso dizer que sim, leitor, eu queria ter um filho com aquela mulher, e, no entanto, não gostava da ideia de ter um filho. Não me aproximei, sequer segurei a mão de Adriana. Não a amparei naquela sala. Fiquei a olhando observando a certa distância, sentado em uma cadeira ordinária de consultório médico. Ela tornou a puxar conversa, sorriu; eu devolvi o sorriso, sem dizer palavra. Não que eu seja tão frio às emoções maternas e aos cálculos da vida, senhor leitor e dona leitora, mas tinha vontade de ir embora, sair correndo.

Acabou. Não deu para ver nada no monitor do aparelho de ultrassonografia além de um imenso pensamento escuro que se mexeu frenético e misteriosamente. O passado tomou conta de minhas entranhas e parou no estômago. Cena em câmera lenta, a angústia de pensar no futuro... Mas, ora!, caro leitor, pensei errado. Refaço o pensamento e percebo que o futuro é o único lugar onde nossos negócios prosperam e nossa felicidade é assegurada; concorda?

Adriana falou, falou, falou; e não me ouviu. O tédio descrito por Flaubert pode ser isto, uma aranha que tece sua teia nos cantos do coração e não ouve ninguém. Saímos pelo complexo hospitalar, fomos jantar no restaurante do centro da cidade. Jantamos bem. Paguei a conta. Entramos no carro. Vinte quilômetros de ideias desconexas depois, chegamos em nossa casa. Caminhamos em silêncio. Em seguida, ela voltou a falar contente. Sentamos no sofá da sala de estar. Olhares reflexivos que bateram na parede e voltaram fez um assovio assombroso no ambiente. Um ano e três meses de casamento, minha amiga leitora. Um ano e três meses... Que apatia da vida! O ânimo de viver tem certas abstenções.

Quando eu tinha dez anos, meu pai me perguntou o que eu queria ser quando crescesse, eu não soube lhe responder. Talvez eu quisesse ser astronauta, jogador de futebol ou um homem rico. Percebo que eu só precisava de uma máquina do tempo. Se eu pudesse voltar ao passado jamais retornaria ao futuro, muito menos ao presente.

- Eu te amo, Juliano!

- Também te amo, Adriana!

- Amor? Vou ligar para mamãe e dizer que vamos ter um filho...

- Não ligue! Vou pedir o divórcio.

Ela chorou, foi para o quarto e dormiu. Eu bebi três ou quatro doses de uísque vagabundo sem gelo, fiquei assistindo televisão até quatro e pouco da manhã, e, sobriamente, faltei no trabalho. Pedi demissão, larguei minha casa e fui morar em um flat alugado. Deixei o presente por causa do passado. E que laços irônicos faz a vida, meu caro, que dá certos nós no pretérito do destino decidindo a sorte em uma sala de consultório médico; se ao menos fosse em um bilhete de loteria... Do futuro, meu filho já tem quatro anos.

Por Ricardo Novais

Piromania de olhares

"Adão e Eva no Paraíso" - Museu do Prado, Madrid.

Pouco mais de meio-dia. Um esdrúxulo silêncio interno, na verdade todo carregado de barulho externo, mistura-se ao burburinho de toda gente que ia aos preparativos do almoço. A porta se abre. Não olho. Escuto os passos. Súbito, o coração descompassa. Os cabelos balançam charmosos e sedutores. O ar esbarra em algum lugar entre o que vejo e o que imagino que vejo. Sempre extraordinário vê-la, atraente, jogando o olhar de verve reflexão, mais minha do que tudo.

Os olhos de uma mulher mudam de direção, como sabe o leitor. Tudo pode lhe chamar a atenção; uma cadeira, uma rajada de vento, uma folha jogada no tapete. Eu fico a observar os movimentos dela; movimentos de movimentos. Em seguida, escuto outros passos, outra mulher, outro barulho; vestido vermelho, esvoaçante, som de salto agudo cavoucando o chão, duro. Da mesma forma, um rosto feminino que desvia o seu olhar...

A leitora que me lê neste hiato de tempo tem razão, acertou em sua análise, minha querida; o olhar é uma gentileza entre um homem e uma mulher. Se a visão de uma Eva encontrar os seus olhos e ela desviar o interesse para outra coisa é porque não há tentação. Mas se uma mulher olhar dentro de teus pensamentos e baixar a cabeça, nem que seja momentaneamente, a ver apenas o chão, encaixou-se algum olhar elétrico e ardente.

Assim sendo, meu amigo, deste ponto em diante há um desafio: a conquista de um sorriso, o sorriso da mulher. E cada ato deve ser preciso, exato, calculado. Vale um gesto ousado, um desejo de ação maliciosa; e do nada se faz o imponderável.

- Olá! – entre um canto de boca.

- Olá! – entre uma provocação. – Linda tarde para um café, não?

Que me perdoe a querida leitora de ideias castiças, mas não há nada de imoral nem promíscuo em desejar as mulheres, todas elas. Não me tome por cafajeste, amiga leitora. Mas desejo é amor, logo, a constância de aparências estraga o amor. Ninguém deseja uma vida de mesmices. O amor nunca é fugaz ou inútil; em essência, o amor é um sentimento contraditório. A começar por um olhar desde os pés femininos, os passos duros e agudos; os joelhos sensuais; a visão subindo em câmera lenta até os olhos, um festim pulsando sangue; o rosto emoldurado pelos cabelos voluptuosos e pela graça naturalmente sexual. É como o prazer que causa o fogo. Um desejo mórbido e incontrolável de incêndio repentino da alma, que excita a vida. Piromania de olhares.

Do resto, não me importa. Deixo toda a felicidade exterior de lado, apego-me apenas às emoções vívidas e atiladas; numa cobiça profunda, e transtornada, de ser o homem que preciso ser. Chego a minha casa tarde da noite. Imediatamente, percebo que tudo que tenho é o olhar, e os olhares.

Por Ricardo Novais

A memória, um minuto de silêncio e o futebol

Em memória de Antônio dos S. Novais, o maior atleticano do mundo.

E o tempo passa, dizia um velho cronista esportivo. Ontem havia dez mil amores em um, hoje já se passaram dez anos. Não que reclame, leitor, eu não reclamo. Não reclamo porque quem reclama da vida não vive, só sente falta. Eu não sinto falta de nada. Há dez anos a vida era diferente, ano após ano vamos deixando as coisas pelo caminho; criamos outras tantas, é verdade, mas quem diz que ninguém é insubstituível diz tolice. Não há como suprir pessoas.

Costumava me visitar uma leitora vestida de vermelho, salto alto e olhar sensual; um dia ela veio, deu-me um beijo de amor e disse adeus. Há dez anos. Lembra-me também a memória que entrava em meu quarto um senhor, sorria, contava quem era o último jogador contratado do Galo, apagava a luz devagarzinho,  sorria novamente e deixava uma benção. Há dez anos... A memória é um minuto de silêncio.

Quem lê estas linhas tortas assim, linha após linha, pensa que o texto não tem sentido; e não tem mesmo. Desculpe-me, meu amigo; quem dera fosse esta crônica como o jogador de futebol, que ora dribla à direita, ora tergiversa à esquerda e sai pelo meio da área, fazendo um gol de placa. Mas não é; pobre crônica! Pois que falo aqui é só sobre o tempo; o seu tempo, o meu tempo, o tempo dos que não têm mais tempo. E o passar do tempo é uma linha reta, que vai indo, indo e, quando se dá conta, já foi. Já se foi a bola, o gol, a torcida, o título...

Mas no dia em que um Galo, fanático pelo tempo, cantou forte e vingador no alto das montanhas das Gerais, empunhado por milhares de vozes unidas, ungidas pelas lembranças, emocionou-se a alma de futebol de um homem; libertou-se a memória de um torcedor que há dez anos não tinha mais time, mas que há dez anos sempre teve a torcida do tempo.

Por Ricardo Novais

A pátria e o povo

Imagem retirada do site Brasil Escola.

Não sou patriota. Não é que não goste do Brasil, nem gosto nem desgosto; sou indiferente à nação. O hino é bonito, a bandeira é imponente e igualmente bela: verde, amarelo, azul e branco; vá lá, mas é só isto, nada mais.

Agora, do povo brasileiro sim, deste tenho muita afeição; a cada olhar de um homem do povo penso em toda a felicidade que pode existir no mundo.

Lima Barreto me ensinou que a pátria é uma ilusão e que real é o brasileiro. Sou pelo real, como sabe. Há quem diga que a vida do povo melhorou nos últimos anos; outros dizem que a economia é pulsante; ouço também, das bocas mais enfáticas e desdentadas, que falta educação, que todos os dias morrem muitos por falta de leito nos hospitais, por fome ou de tiro de revólver; as bocas dizem muitas coisas, leitor que escuta, e podem estar certas, são amparadas pelas senhoras estatísticas, e estas senhoras, em conjunto com os senhores números, não costumam mentir.

Mas não quero saber de senhoras e de senhores. Quero ver como vai o povo brasileiro. E os vejo por aí, nas ruas, praças, botecos, igrejas, padarias, escritórios, restaurantes, fazendas; em um passeio pela cidade, de vez em quando indo ao interior; as notícias chegam, elas chegam por um amigo, um conhecido que mora longe, em redes da internet ou no rádio, por uma mulher que não te esqueceu; enfim, notícias da gente, boas e ruins, sempre chegam de algum lugar desta terra brasilis.

O governo e a pátria podem ser sim necessários, mas para mim também são indiferentes. Do mesmo modo que desconfio de manifestante em grupo. Perdoe-me por dizer, dona leitora que acredita na política, mas manifestos são feitos por seres orgulhosos e irreflexivos, quando não raro agem por instinto violento e pura presunção de se meter na vida da gente – nem a pátria, nem o governo e nem o manifestante me representam; nenhum deles são povo. O povo não mora na pátria e nem conhece o governo. Acredite, leitor patriótico que nunca pegou um ônibus para a periferia ou dormiu na rua. As gentes moram mesmo é na cidade, nas casas, apartamentos, ou nas ruas, debaixo de pontes, bancos de igrejas, bancos de praças, bancos de bares, carroças do sertão; e os conhecidos do brasileiro são os seus colegas de trabalho, o chefe que lhe deu emprego, os amigos da universidade, do futebol ou de infância; a dona de casa, tradicional integrante do povo, é amiga do apresentador do noticiário sensacionalista, que também é brasileiro; a professora é amiga do aluno, e para este a professora é sua musa; o motorista do ônibus é brasileiro, assim como o guarda do banco, os escritores, os leitores, músicos e viajantes do metrô; é brasileira a prostituta, que toda noite derrama uma curta lágrima de saudade pelo bandido, pelo padre ou pelo pastor, que também são povo; e o povo é pelo povo; pois é no povo que se encontra o nosso grande amor.

Assim, deixo o Brasil e a pátria apenas para cantar o hino; e também gosto de ver a bandeira nacional tremular imponente nos dias de céu bem azul; ao governo, não lhe peço nada, lhe desejo paz, e alguma consciência, somente isto. Não apoio movimento social nenhum. A única manifestação que faço é o sentimento profundo que sinto de admiração, consternação e emoção vital ao povo brasileiro, ou seja, manifesto sentimento a mim mesmo.

Por Ricardo Novais


Deus perdoa

Paulo, o primeiro dos missionários. Foto Rafael Gomes.

Casei com um homem mais velho, bem mais velho. Casei por interesse. Minha mãe foi a única pessoa que ficou feliz; meu pai me perdeu por causa de dívida, dívida com a máfia italiana ou da roça mesmo. No Brasil é difícil saber de onde vêm as pessoas, somos uma família de expatriados.

Nasci em um sítio perto de Campinas. Aos 9 anos incompletos, fui morar com uma irmã mais velha na cidade. Terminei meus estudos regulares e então me mandaram para São Paulo. Até os 22 anos de idade eu tinha uma vida muito extravagante, dava para caras endinheirados por muita grana e morava bem em um apartamento da Alameda Lorena. Eu era bonita, muito bonita.

Paulo Roberto era velho, muito velho. Amigo de família, lá dos tempos da roça, um dia ele veio em casa e jogou uma maleta com oitocentos mil reais na mesa de jantar e um contrato de casamento. Meu pai estava junto com ele.

- Minha filha querida...

- Saia, papai! Paulo, fique.

Desde então, fiquei ainda mais bonita; Paulo Roberto, ainda mais velho. Meu pai, morto. Graças a Deus. Ele perdia muito dinheiro. Em seu leito de morte, a alma de papai foi pesada em menos de 21 gramas. Minha mãe também já morreu, morreu feliz. Paulo Roberto foi amante de mamãe, talvez por isto ela sabia que ele me faria feliz.

- Emanuelle, meu amor será teu escravo.

- Sim, estou protegida ao seu lado. Obrigada.

Tenho um filho. O filho é do Edu, mas Paulo Roberto pensa que é dele. Que velho burro! Várias vezes ele já me pegou na cama com outros homens e até mulheres, mas só diz: “Deus perdoa”. Paulo não é Deus, é meu pai biológico.

Deus não joga dados fora, diria algum leitor com ares de cientista. Eu acredito em Deus. Por isto não tenho remorso de nada, Deus perdoa tudo. Eu posso trair, enganar, roubar; Paulo pode trair, enganar, roubar e até matar; Deus perdoa, e isto é tudo.

A minha vida é muito boa. Sou uma mulher de 33 anos que não conhece varizes nem limite de cartão de crédito. Encontrei a partícula de Higgs, não vou à igreja, ouço Alice in Chains e tenho hora marcada na sessão de yôga toda manhã. Quando Paulo Roberto morrer, vou abrir uma rede de academias de ginástica.

Por Ricardo Novais

Um estranho conto de verão

Arquivo pessoal.

Quando cheguei à cidade de Nossa Senhora da Lua para passar quinze ou vinte dias não imaginei que tipo de aventura seria. Uma visita em férias de verão ao meu velho avô, nada mais. Não. Foram os dias mais estranhos de minha vida.

A cidade, que não era grande nem pequena, sendo apropriada para se viver bem, ficava encravada no meio das montanhas. Aeroporto vizinho, aviões cruzando o céu celeste contrastando com a briga em terra entre os automóveis e os cavalos, burros e mulas.

- Ah, meu filho! – diziam-me os caboclos –, esse lugar tem esse nome por causa do Doutor da mula russa...

Em verdade, o tal Doutor era um médico, morto há várias décadas; atendia as cercanias montado numa mulinha avermelhada, daí que o apelidaram de “Doutor da mula russa”. Certo dia, percebendo a própria popularidade, candidatou-se a prefeito da cidade; na época, uma pequena vila chamada Nossa Senhora do Pilar. Prometeu ao povo que, se eleito, distribuiria lotes a todos, sem custos. É claro, leitor que também é eleitor: o Doutor venceu a eleição, mas não cumpriu o prometido. A população então começou a fazer chacota com a história, que os lotes só seriam dados na lua. Isto enfureceu ao prefeito, qual tratou de arranjar uma fazenda imediata e reparti-la com cercas de arame-farpado, distribuindo os lotes ao povo. Não era uma aérea tão grande, mas nada era tão grande naquele tempo; todos os caboclos, ou quase todos, receberam seu quinhão de terra. O Doutor da mula russa, orgulhoso do feito, mandou a câmara dos vereadores trocar o nome da cidade e inaugurou na avenida de paralelepípedos um obelisco com uma réplica de uma meia-lua de uns cinco metrôs de altura. E assim surgiu a estranhíssima Nossa Senhora da Lua...

Sim, meu amigo e minha amiga que me leem; isto nada que tem que ver com o que de estranho aconteceu comigo naqueles dias em que visitei a cidade. Vovô morava numa casa bem grande, no final da avenida principal, qual dava para a entrada da região das fazendas. O táxi parou no portão, desci e veio me receber uma menina de quinze, talvez dezesseis anos. Sorriu-me, devolvi o sorriso.

- Sabe se o Seo João está em casa? – perguntei.

- Ele está sim... – ela respondeu mordendo o lábio inferior. – Você deve ser o Beto, né, neto de Seo João?...

- Sim...

- Vamos, Beto; entre, entre, moço!

Subi três ou quatro degraus de madeira, entrei pela varanda, o vento batia fresco ao rosto, vindo do rio abaixo. O andar pelo corredor, entre a sala principal e a varanda dos fundos, soava familiar; os meus sapatos entrando em atrito com o piso de madeira encerado cantavam uma canção antiga... Som de saudade. Avistei vovô fumando um cigarro de palha de fumo preto, sentado na velha cadeira de balanço. Levantou-se com dificuldade, deu-me um forte abraço.

- Estava aqui pitando de olho no rio, menino. Nem vi a hora passar... Mas, ora, estava te esperando. Fez boa viagem?

- Sim, fiz sim, vovô...

- Não fique aí olhando, menina boba! – gritou ele, de repente, à moça. – Traga uma cachaça para que eu brinde aqui com o Betinho, meu querido neto... – ele ria sem abrir a boca. – Ande, Mariana!

A menina saiu de um pulo e voltou noutro trazendo uma garrafa de pinga da boa e dois copos de cerâmica. Ela não foi embora, ficou no canto da varanda, parecia observar com curiosidade; eu percebi e nada disse. Não, não leitora querida, não fique aí a imaginar histórias. Mariana era linda, de uma beleza simples e cativante, no entanto, nem que eu quisesse me atreveria a desrespeitar vovô. Veremos...

Naquela noite, dormi bem, muito embora porque a viagem até ali fosse cansativa – se não tivesse perdido o voo em São Paulo, vá lá, mas o destino não é muito generoso com aqueles que se atrasam com ele. Pela manhã, acordei e fui me trocar para as aventuras que eu suponha bucólicas. Ao sair do banheiro, vi Mariana sentada na cadeira de balanço de vovô.

- Bom dia! – eu disse.

- Já acordou? – ela não demonstrou surpresa por eu tê-la visto ali. – Vou preparar um belo café da manhã. Aguarde, moço. – as palavras eram ditas por ela em tom baixo, educado, porém atrevido, mordendo os lábios, sorridente.

- Você mora aqui... – hesitante, tentei puxar assunto.

- Mariana. – ela me ajudou completando a frase.

- Sim, claro; Mariana. – eu estava encabulado. – Você mora aqui, Mariana?

- Sim, eu moro. Seu avô é um bom homem.

- Hum... Entendo, entendo. E... Quantos anos você tem?

- Ó, que bobo; o dó.  ela era fustigantemente natural. Em seguida, completou a sentença: – O suficiente para ser eficiente.

Era uma mulher, embora em corpo de adolescente. Selvagem, como um animal que necessitasse de rédea e bocal para domá-lo. Mariana me perturbou, e este sentimento era tudo. E tudo me pareceu estranho.

Esquisito. Moro em uma cidade onde tudo é possível e, no entanto, nunca parei para pensar que há mais vida possível e impossível do que supõe o povo polido. Sintomático.

Sentei-me à mesa com vovô para o café da manhã com café preto, pois que quase todo o resto era à base de queijo: pão, queijo, requeijão e doce de leite com goiabada. Havia também algumas frutas não muito frescas. Acabamos e ficamos olhando o rio sem nada para planejar, fazer, nada de se preocupar com nada que não fosse o caminho das águas lapidando o imponderável; verdade que também ficamos assim, por dizer, aguardando o almoço. Repentino, meus pensamentos pulsaram junto com o sangue quente. Estava quente naquele dia, o verão é muito quente entre as montanhas. À tarde, fui à missa com vovô e de lá à venda do Seo Zé, que nada mais era do que um boteco.

Bebemos, relembramos histórias passadas, relembramos vovó, vovô chorou, falamos de papai, mamãe, da cidade grande, da roça, a herança da fazenda, enfim, revivemos nossas lembranças; só não falamos do presente. O futuro era um fantasma.

Quem nos servia era Luciana, uma menina de quatorze, talvez quinze anos. Ela também tinha idade suficiente para ser eficiente e trabalhar para o Seo Zé, este praticamente um viúvo de esposa viva, já que Dona Mariquinha já havia entregado a sua alma, e o seu corpo, para Cristo. Eu bebia a pinga sem saber bebê-la. Embriaguei-me, leitor. E um homem bêbado enfrenta seus fantasmas.

- Vô, o senhor está doido? A Mariana... Meu Deus! O que houve com este lugar?

Pensaram certo, senhor leitor e dona leitora. A imprudência quando encontra os pensamentos enfáticos despedaça as relações humanas. Vovô irritou-se profundamente com meu moralismo provocado pela filosofia etílica. "Carlos Roberto, você é bicha? Seu 'coisa ruim'!", acusou-me. Seo Zé expulsou-me do boteco.

Fiquei perdido, subi no coreto da praça da igreja matriz e ali fiquei. Luciana foi até lá e me levou a uma boate azul, local dos refugiados da região. Ficava em um morro, uma casa com ares de casa de fazenda que servia para os encontros amorosos, contratos amorosos e contos amorosos dos caboclos. Mariana também estava lá. Eu bebi uma dose dupla de uísque, pedi à Mariana que no outro dia fosse buscar as minhas coisas na casa de vovô; paguei a conta da bebida e fui para um hotel. Aquele foi o meu primeiro dia na cidade.

Passei outros quatorze ou quinze dias naquele hotel, perto da igreja matriz, transando com Mariana e Luciana, e assistindo as duas transarem – éramos três animais sem rédeas e embocaduras para nos domar. Mas já findava o verão. Fiz as malas, fui para o aeroporto e deixei a cidade. Dias depois chegou a notícia de uma desavença entre as duas, Luciana matou Mariana cravando-lhe uma faca no pescoço. Verão estranhíssimo.

Por Ricardo Novais

Praça da boa morte

"Cidade", de Claudio Tozzi.

Sentei-me à mesa. Não eram mais que duas da tarde. O almoço era um filé de frango à parmegiana e panquecas de carne seca, refrigerante, água e pudim chinês de sobremesa. Do mezanino do restaurante, comecei a olhar através de uma grande janela de vidro cristalino que dava para a rua. Numa pracinha, camuflada entre os grandes edifícios, quatro senhores jogavam baralho e bebiam cerveja – aos meus olhos, pareceu-me um paraíso no meio de uma selva de pedras.

Na avenida em frente à pracinha, o trânsito humano-automotivo, pesado e contínuo – violento como a personalidade desta cidade. Antagônica, assim é a personalidade de São Paulo. Um dos senhores que embaralhava as cartas na mesa de pedra, julguei que era um jogo de truco, dado os trejeitos afetados dos jogadores, chamou-me mais a atenção. Ele não era diferente dos outros, entretanto, era ele quem distribuía as cartas, naquele momento. E a vida é o momento, meu caro leitor. Os braços, com rugas e vincos, eram ágeis; o semblante cansado não lhe deixava mais velho, ao contrário, emprestava-lhe uma jovialidade atrevida. O boné azul de aba curta que usava combinava com a camiseta de regata branca e a bermuda jeans, e o tênis cinza calçado com um par de meias claras até a altura da canela lhe devolvia a juventude. Um menino-velho. Mas já lhe disse, leitor, os outros senhores eram como ele, juvenis; e todos riam. Riam e riam, riam muito. Não sei do que eles falavam; de onde tiravam tanto assunto, dona leitora? E não sei do que tanto riam. Percebia-se, no entanto, que debocham de suas próprias velhices, dado os seus dedos apontando sempre para si. E também porque na placa municipal encravada no cruzamento da pracinha, lia-se: “Praça da boa morte”. Eis o segredo da vida.

O trânsito continuava o seu fluxo natural de extrema violência. Os pedestres, elegantemente trajados, cruzavam as alamedas em um bater de pernas, frenético e indiferente, como sempre, carregando os seus próprios cadáveres às costas.

Leitor, perceba que a nossa brilhante amiga leitora já alcançou o que de interessante, ou que de alguma importância, aconteceu neste conto, de modo que não lhe explicitarei nada; se tiver dúvida, torne aí as linhas acima e releia tudo, tudinho. Contudo, em consideração à nossa amizade, digo-lhe agora que acabei de almoçar, paguei a conta do restaurante, saí pela porta da frente – deixando para trás o meu carro no estacionamento dos fundos. A pé, fui pela calçada sem perder de vista aqueles meninos-velhos e seus lances de baralho. As cartas estavam na mesa, todas elas. Aguardei com paciência que o farol de trânsito abrisse para os pedestres; atravessei na faixa que dava acesso à pracinha. Passeei a passos curtos. O senhor, que continuava a embaralhar os coringas e as manilhas, talvez numa nova jogada, admiravelmente me cumprimentou; acenei-lhe com a mão. Todos sorriam. Dei a volta pelas alamedas, vagarosamente; aguardei que o mesmo semáforo abrisse; atravessei a avenida na mesma faixa de pedestres. Entrei no estacionamento dos fundos, saí com meu carro na calçada da frente, não furei o sinal vermelho. Aguardei. O sinal verde indicou a necessidade de seguir em frente, e assim foi.

Por Ricardo Novais
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