"Cidade", de Claudio Tozzi. |
Sentei-me à mesa. Não eram
mais que duas da tarde. O almoço era um filé de frango à parmegiana e panquecas
de carne seca, refrigerante, água e pudim chinês de sobremesa. Do mezanino do
restaurante, comecei a olhar através de uma grande janela de vidro cristalino que dava para a rua.
Numa pracinha, camuflada entre os grandes edifícios, quatro senhores jogavam
baralho e bebiam cerveja – aos meus olhos, pareceu-me um paraíso no meio de uma
selva de pedras.
Na avenida em frente à
pracinha, o trânsito humano-automotivo, pesado e contínuo – violento como a
personalidade desta cidade. Antagônica, assim é a personalidade de São Paulo.
Um dos senhores que embaralhava as cartas na mesa de pedra, julguei que era um
jogo de truco, dado os trejeitos afetados dos jogadores, chamou-me mais a
atenção. Ele não era diferente dos outros, entretanto, era ele quem distribuía
as cartas, naquele momento. E a vida é o momento, meu caro leitor. Os braços, com
rugas e vincos, eram ágeis; o semblante cansado não lhe deixava mais velho, ao
contrário, emprestava-lhe uma jovialidade atrevida. O boné azul de aba curta
que usava combinava com a camiseta de regata branca e a bermuda jeans, e o tênis cinza calçado com um par de meias claras até a altura da canela lhe devolvia a juventude. Um
menino-velho. Mas já lhe disse, leitor, os outros senhores eram como ele, juvenis; e todos
riam. Riam e riam, riam muito. Não sei do que eles falavam; de onde tiravam
tanto assunto, dona leitora? E não sei do que tanto riam. Percebia-se, no
entanto, que debocham de suas próprias velhices, dado os seus dedos apontando sempre
para si. E também porque na placa municipal encravada no cruzamento da pracinha,
lia-se: “Praça da boa morte”. Eis o segredo da vida.
O trânsito continuava o seu
fluxo natural de extrema violência. Os pedestres, elegantemente trajados, cruzavam
as alamedas em um bater de pernas, frenético e indiferente, como sempre, carregando
os seus próprios cadáveres às costas.
Leitor, perceba que a nossa
brilhante amiga leitora já alcançou o que de interessante, ou que de alguma importância,
aconteceu neste conto, de modo que não lhe explicitarei nada; se tiver dúvida,
torne aí as linhas acima e releia tudo, tudinho. Contudo, em consideração à
nossa amizade, digo-lhe agora que acabei de almoçar, paguei a conta do
restaurante, saí pela porta da frente – deixando para trás o meu carro no
estacionamento dos fundos. A pé, fui pela calçada sem perder de vista aqueles meninos-velhos
e seus lances de baralho. As cartas estavam na mesa, todas elas. Aguardei com
paciência que o farol de trânsito abrisse para os pedestres; atravessei na
faixa que dava acesso à pracinha. Passeei a passos curtos. O senhor, que
continuava a embaralhar os coringas e as manilhas, talvez numa nova jogada, admiravelmente
me cumprimentou; acenei-lhe com a mão. Todos sorriam. Dei a volta pelas
alamedas, vagarosamente; aguardei que o mesmo semáforo abrisse; atravessei a avenida
na mesma faixa de pedestres. Entrei no estacionamento dos fundos, saí com meu
carro na calçada da frente, não furei o sinal vermelho. Aguardei. O sinal verde
indicou a necessidade de seguir em frente, e assim foi.
Por Ricardo Novais
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