Presente de Natal

Google Imagens.

Cheguei cansado em casa, eram quase sete da noite. Tirei o paletó e esparramei-me no sofá. A casa estava vazia. Depois de sair do trabalho, Marcinha iria pegar a Duda na escola no último dia de aula do ano letivo. Mas a casa ainda estava vazia. Liguei a tevê. Deixei-me passear pela internet teclando à toa por uma hora, talvez mais.

Tinha um embrulho em cima da mesinha de centro, estava aberto, mas não toquei nele. Marcinha chegou com a Duda, as duas vieram me beijar. Marcinha parecia irmã mais velha de Duda, de tão fina e angelical, mas, numa observação mais detalhada, via-se a mulher absoluta e atraente. Duda tinha oito anos incompletos; era belíssima, graciosa, iluminada; era a nossa jovem Maria Eduarda Maia.

Marcinha subiu para ajudar Duda com o banho e outras coisas de meninas, eu fiquei no sofá com a tevê ligada, tomando uma cerveja e navegando na net. O embrulho começou a olhar para mim, eu a olhar para ele. Era época de Natal. Inclinei-me à mesinha e peguei o pacote. Desembrulhei-o. Havia um smartphone novinho dentro, de última geração. Não tinha indicação de presente, do portador, remetente, dono etc. Coloquei-me a pensar muitas coisas. Passou-se bem mais que um quarto de hora, Marcinha anunciou o jantar: pizza e suco de caixinha.

- De quem é aquele celular que está na sala? – perguntei ainda no primeiro pedaço da pizza de bacon.

Não ouve resposta, insisti na pergunta. Duda cortou:

- Papai! Papai! Eu aprendi a nadar hoje...

- Que legal, filha! Parabéns! Papai está orgulhoso de você.

Duda me deu beijos, retribui-os com certo fastio. Abracei-a, passei a mão em seus cabelos finos e castanhos. Marcinha nada me dizia.

- Vamos escovar os dentinhos para ir dormir, Duda... – Falou Marcinha, pegou na mão de Duda e subiram.

Fiquei na sala. Bebi outra cerveja e vieram os pensamentos mais imprevisíveis, não fortuitos e diversos deste mundo. Leitor, que acha? Um smartphone de última geração na mesinha de centro da sala sem que seja eu o comprador e sem que sua mulher diga de quem seja? Estranho enigma! Muito estranho, concorda comigo? Lembrei-me de quando ela chegou com a Duda, do beijo frio que me deu e das poucas palavras ditas; da falta de resposta, do enigma formado. Bebi outra cerveja e subi as escadas a passos arrastados.

Entrei no quarto de dormir. Marcinha estava encostada numa almofada sobre a cama vendo novela, sentei-me em um puff que se afundou, senti-me inseguro, levantei-me. Dei duas voltas no quarto sem dar palavra, por fim, disse algo.

- De quem é isto?  questionei segurando o smartphone na mão direita e cutucando-a com a outra mão.

Ela não respondeu, insisti.

- De quem é, porra? Diga! Quem deu isto pra você?

Como não havia resposta, agarrei-a e gritei. Marcinha começou a chorar, nada dizia. Eu fui ficando louco, fiz um algoritmo zeloso. Marcinha em prantos. Soltei-a. Ela virou o rosto. Um lençol de lágrimas cobriu meus pensamentos: “De quem é esta porcaria de smartphone? Esta mulher está escondendo algo!”.

- Você é um ignorante, Eduardo! – exclamou isto para mim, entre soluços, apresentando-me o cartão de "boas festas" que foi entregue pelos correios junto com a encomenda e onde se lia:

Dudu, querido!
Mando a você este smartphone de presente como prova de que não te esquecerei, jamais.
Um beijo de quem te amará ‘ever’, ‘ever’, ‘ever’;
Feliz Natal e próspero Ano Novo!
De quem soube esperar e o amou, e ainda o ama, com paciência;
Rosa”.

Por Ricardo Novais

Uma visão

"A visão do mar". Foto de arquivo.

A saudade é a ponta de uma fita durex. Uma fita dando volta em si mesma; adesiva, aderente, grudenta. Perde-se a ponta da saudade para achá-la novamente adesiva, aderente, grudenta. É saudade, leitor. Uma lembrança que circula amassando a rotina, rasgando o papel do compromisso e tornando um pedaço de mensagem do passado em presente, um presente que não se sabe se retornará em futuro.

Como me diz a minha amiga leitora, que a tanto prezo pelo laço de ternura, a fita de durex é uma saudade que cola o amor, a amizade, a admiração, a ponta de uma visão do mar; e que coladas, ponta sobre ponta, emenda dizendo à alma onde se quer voltar. É verdade, amigo que me lê; não me tome por patife. Uma fita de durex é capaz de selar a lembrança de um pai, de uma paixão, de uma música, de uma morte cômica, de uma redação escolar da 7ª. série.

Ter saudade é dar um abraço no passado envolto em um rolo de fita durex adesivo, aderente e grudento. Contudo, nem toda a cola do mundo é capaz de grudar o riso infinito de uma tesoura cortante e gélida.

Por Ricardo Novais

Eleição republicana

"República Federativa do Brasil", charge da revista Illustrada.

Diz a lenda recente que um candidato à cadeira presidencial precisava de votos para vencer uma eleição republicana. Foi aos quatros cantos do país para comprar eleitores, mas as pesquisas de intenção de votos não lhe favorecia como planejado. Até que tinha padrinhos fortes, alguns estrangeiros influentes, outros com envergadura de formadores de opinião, mas nada disto dava jeito, então, resolveu comprar votos em um lugar mais inóspito: o inferno.

Foi ao inferno, falou com o coronel das almas caídas; era o diabo em pessoa. O diabo era o dono de todo aquele território e possuía total jurisdição sobre as almas do povo que lá vivia.

- Ora, ora, ora! Muito bem, senhor candidato; o que queres?

- Como vai o senhor, senhor diabo? Bem, venho por necessidade... Bem, meu amigo... Meu amigo diabo... Vamos negociar votos?

- Votos ou almas?

- Bem, aí vai da campanha política.

- Antecipo que teus concorrentes já estiveram aqui...

- Quero almas!

Em pouco tempo, observadores de todas as partes da república apontavam o favoritismo do candidato, a imprensa geral emitiu apoio e a vontade do povo foi soberana – quase uma carta magna infernal. O leitor, que também é eleitor, conhece a vontade de ferro do povo; é como diz o ditado, “a voz do povo é a voz de Deus”... Bem, nem sempre, como sabe o amigo.

Chegou o dia da eleição. Vitória nas urnas! O candidato foi para o segundo turno. Porém, agora havia a necessidade de muito mais votos. Então, lá foi o candidato novamente ter com o diabo.

- Mais almas? – perguntou o capeta exalando enxofre pelos cantos oblíquos da boca.

- Sim! – exclamou o político suando como um porco infernal. – Quero todas que tiver aí por um bom preço.

- Há de convir que estejam mais caras, agora é decisão...

- Eu pago!

Pagou e deu a própria alma como garantia. Vitória nas urnas!  Elegeu-se no segundo turno.

Ainda no primeiro ano do mandato presidencial, quitou a dívida com o diabo. As almas compradas valeram uma verbinha desviada de uma escola pública aqui, outra acolá; um hospital malfeito aqui, outro hospital sem médico acolá; em algum canto remoto da república, a construção de praças públicas para uma população fantasma ou pontes inacabadas sobre rios secos... Mas ora, amigo leitor-eleitor, não reclame tanto! Contribuir com impostos não garante direito de queixar-se aqui ou reivindicar posição junto ao autor do conto. Aquiete-se também, senhorita leitora! Além de que, amigo patriótico e querida senhorita cívica, para que prestar serviços públicos a um povo desalmado?

O diabo, sempre sorridente e audacioso, como sabe, ampliou seus domínios e ainda comprou carros de luxo, mansões, modelos “capa de revista” e um luxuoso iate infernal para esfriar a cabeça, de vez em quando, em sua marina particular no Lago Paranoá. Já o povo, sempre na mesma: desalmado; sem alma, sem coração, sem glória. Mas nem tudo é perdido nesta vida, como já vem a adivinhar a nossa amiga leitora. Daqui a pouca esperança, já há mesmo outra eleição republicana... E viva a república!


Por Ricardo Novais

Majestoso


Cléber era meu melhor amigo. Trabalhávamos juntos em uma empresa de informática. Eu era solteiro, Cléber era casado, casado com Renata. Renata era muito ciumenta. Nada de futebol, chopinho ou churrascos nos finais de semana. Renata tinha medo que Cléber se enrabichasse por alguma “nega”, como ela dizia entre as amigas da vizinhança. Não, leitor, não pense que era um tribufu, ao contrário, era uma mulher muito bonita, porém, como muitos deste século, Renata padecia de baixa autoestima.

- Neto, cola lá na minha casa hoje à tarde para tomarmos umas cervejas, vamos ver o Timão jogar? – Cléber me convidava sempre em dia de clássico Majestoso.

Eu era são-paulino; Cléber, “coringuento”, como ele denominava um torcedor tradicional do Corinthians. Eu sempre ia ver o jogo na casa dele. Renata gostava de mim; fazia salgados, trazia cervejas e sentava abraçada ao lado do marido. Aquilo me irritava, um pouco. Tarde da noite, eu ia embora sempre meio bêbado e atordoado com as conversas de Renata e Cléber.

Um dia, Cléber resolveu ir acompanhar seu time em um torneio fora do país. Ele era torcedor fanático. Renata não foi, pareceu triste. O casamento parecia não ir bem, o ciúme obsessivo dela, aliado à indiferença de Cléber, atormentavam os dois; era perceptível a todo o prédio. Ah, eu ainda não disse, não é mesmo, leitor? Então digo agora. Eu morava no mesmo prédio que o deles, só que no terceiro andar enquanto que eles moravam no oitavo.

Na segunda noite sozinha, Renata me convidou para jantar. Fui. Jantamos, conversamos, gargalhamos, transamos. Não me julgue, implacável dona leitora. Cléber era um bom sujeito, mas amor não se escolhe. Renata amava Cléber. Eu os amava. Quando o Cléber retornou da viagem com toda a torcida de seu time, Renata contou-lhe tudo – a traição, autoria, detalhe e concluiu como “caso aventureiro” – e suplicou o perdão do marido.

- Não! Como pode fazer isto? Não acredito... Logo agora!... Neto? Como ele pode fazer isto comigo? – Cléber chorava como criança, mas dava murros na mesa como um assassino prestes a atacar seu inimigo.

Repentinamente, levantou-se da cadeira do quarto de dormir e saiu correndo, gritando:

- Isto não fica assim! Isto não fica assim! Neto me paga! Ah, não fica assim!

Há coisas, meu amigo e minha amiga, que só se sabe depois. Como isto é um conto, antecipo o que já ocorreu antes de ter ocorrido; até este parágrafo, evidentemente. Agora sei que, depois que o Cléber saiu furioso, batendo porta, esmurrando o elevador, Renata, receando o pior, tentou cessar o choro, tentando acalmar-se, e sopesou que tinha que fazer algo para evitar uma tragédia. Então, foi atrás do marido-corno. O elevador já havia descido. Parou e então ela saiu em desabalada carreira em direção às escadas. Desceu, correndo, tropeçando, engolindo choro, remorso e o desespero de uma morte anunciada há pouco. Sentia-se culpada. Chegou ao andar, terceiro andar, o andar que eu morava. Parou. Andou lentamente pelo corredor. Parou novamente. Estava em frente a meu apartamento.

Cléber discutia comigo:

- Como pode fazer isto, Neto?

- Por vingança, Cléber. Você acha que é fácil? Aguentar você com ela e eu sempre me contentando em esperar? Ah, vá pra...

- Mas logo agora? Se eu fui viajar justamente para dar um tempo, para tomar coragem e contar tudo à Renata? Eu ia me separar dela, seu imbecil! Eu ia me separar dela para ficar com você, seu cretino!

Nisto, Renata entrou no apartamento. Ela escutara tudo atrás da porta, que havia ficado entreaberta.

- Renata? – eu gritei. – Renata, eu te amo!

- Ai, meu Deus! O que é isto? Vocês... Vocês... Vocês... Um casal?

- Perdoe-me, Renata. Eu ia te contar...

- Cala a boca! – ela gritou colocando as mãos sob as orelhas, mas os ouvidos estavam abertos.

- Eu te amo, Renata! – eu exclamei.

- E eu amo você, Neto! – gritou Cléber.

- Bichas! – concluiu Renata e saiu correndo.

Renata saiu correndo, entrou no elevador e fechou a porta. Cléber me segurava. Dei-lhe um murro. Fui atrás de Renata pelas escadas. Toquei a campainha, arrombei a porta. Renata havia pulado da janela do oitavo andar. Eu perdi o chão. Cai no assoalho e chorei. Levantei-me com a polícia me fazendo perguntas e com o síndico dando a última notícia:

- Mas que tragédia nesta família! Dona Renata pulou da janela e... Bem, sabe, doutor Neto, o doutor Cléber... Bem, o doutor Cléber está pendurado pelo cinto da calça em uma pilar de seu apartamento...

Há coisas que não se explicam, senhor leitor e dona leitora. Como um cinto de calça aguenta o peso de um homem e como um homem não aguenta o peso da dor de uma derrota em um clássico do futebol? Há coisas que não se explicam.


Por Ricardo Novais

Mulher misteriosa

Pintura de Luis Antonio Juarez Palomo.

Casei-me com Carolina. A vida era boa; casa grande, térrea, arejada, jardim da zona sul, plano de filhos. Passaram-se seis ou sete meses. O leitor audacioso pode imaginar que a rotina é uma aranha pendurada em algum canto da retina, e assim foi.

Está bem, dona leitora indiscreta, nada passa por ti sem questionamento; admito que o narrado no primeiro parágrafo tenha uma lacuna, uma lacuna perfumada: Mariana. Eis então o segundo parágrafo... Mariana era minha amante mesmo antes de meu casamento; desculpe-me, amiga leitora, mas o perigo de dois amores era, aos meus olhos de tempos atrás, místico e capaz.

Mariana morava sozinha em um apartamento pequeno na zona sul. Trabalhávamos juntos, embora em departamento diverso. Encontrávamos todos os dias, fosse por negócios ou por instinto sexual, neste caso, poderia ser em algum elevador do acaso. Eventualmente, passávamos as noites juntos em um sequestro consentido. Carolina teimava em acreditar em desculpas vazias, até que ocorreu um fato imponderável...

Uma mulher misteriosa, sem rosto, sem citação, sem origem e destino surgiu de maneira atrevida. O atrevimento de uma relação de assédio é a pólvora da bomba que não explode. Uma rede social vulgar, mensagens privadas, instantâneas, a inexplicável troca de telefonemas. Foram dois ou três telefonemas; voz sensual, baixa, porém, audível, firme e mesmo assim atraente. Ocorreu um encontro.

 - Rua do Arcano, n° 174, apartamento 39; esteja lá às 16h09min horas!

- Sim... É... Ei, mas por que às 16h09min?

- Esteja lá! Sabe onde é?

- Sim.

- Até. Beijo.

- Até.

Sabe, amigo leitor que designa a vida aos mistérios sem resposta, um encontro às escuras é uma coisa muito atormentadora. E a teimosia de horário cravado era familiar, embora me pareça que toda mulher goste de caprichos... Carolina mesmo sempre insistia nisto de horários cravados... Enfim. Cheguei dez minutos, ou menos, antes das 16h; prédio sem porteiro, interfonei, a mesma voz misteriosa atendeu e mandou-me subir. Subi. Três andares, não havia elevador. Subi devagar por uma escada larga, segurando firme no corrimão de madeira sob a superfície de mármore. Tudo era silêncio. O rol vazio, todas as portas fechadas, poucos móveis; três lances de escadas depois, n° 39 na porta. Olhei no relógio de pulso, 16h07min. Pendurada na porta, uma venda e um bilhete: “Coloque a venda nos olhos”. Hesitei, olhei novamente para o relógio: 16h11min. Estava excitado. Sorri. Coloquei a venda nos olhos, mas deixei-a meio frouxa. A porta abriu.

- Boa noite, garotão! – disse a voz forçando um tom sexy; em seguida, virou-me e apertou com força a venda sob meus olhos.

Breu, sentia-me bem. A mulher me tocava, falava pouco e baixo, mas gemia nos meus ouvidos. Foi me despindo, deitou-me em um colchão grande alto sob o piso. Um perfume sublime!

- Quem é você? – perguntei.

- Sou a mulher de seus sonhos.

- Estou gostando muito deste jogo... – Confessei.

- O jogo apenas começou, meu bem!

Eu disse o quanto aquilo me excitava, o quanto era diferente e surpreendente. Percebi, no entanto, que tinha falado muito, sem respostas. Eu estava nu, chamei por ela, sem resposta. Tirei a venda. Não tinha ninguém. Assustei-me, olhei no relógio. Quinze para às cinco da tarde. Vesti-me rápido e de qualquer jeito. A porta estava aberta, olhei para todos os lados alcançáveis, ninguém à vista. Não gritei. Desci as escadas, bem devagar, com os sapatos e o paletó na mão direita, segurava com força o corrimão com a outra mão. Luzes acesas. A porta principal estava fechada, mas havia uma porta de vidro aberta na lateral do rol. Saí do prédio. Dia claro ainda. Corri até o carro, sorri mecanicamente da aventura.

Liguei para Carolina, ela não me atendeu. Fui para a casa de Mariana. Tomamos vinho argentino. Transamos, contei a ela o que havia acontecido naquela tarde. Sim, leitor, essas coisas não se contam a outra mulher; aposto que a querida leitora está a dizer-me tolo; desconte das três ou quatro taças de vinho que tomei. Malditos argentinos! Desconte também de meu estilo de vida ocioso, como sabe. Não dava para esconder. Contudo, sopesei que errei, antes tivesse ido direto para casa e me poupado do ridículo de contar aquilo para uma amante tão trivial; um homem sabe ser ridículo... Tanto melhor que não tinha dito à minha esposa, mas, de todo modo, ridículo.

- Você é um galinha! – concluiu Mariana gozando com minha cara.

Nada respondi, sentia-me mal. Fui embora cabisbaixo e, desculpe-me o linguajar, amiga que me lê, fui embora com o rabo entre as pernas. Em casa, sentei-me no sofá, abri uma cerveja, vi um pouco de futebol. Tomei banho, Carolina dormia. Noite tranquila.

No dia seguinte, Mariana perguntou-me sobre a mulher misteriosa. Respondi que eu estava brincando, ela deu de ombros e saiu. Após o meio-dia, recebi uma mensagem pelo aplicativo do celular me intimando:

No mesmo lugar, hoje, às 13h04min!”.

Sentei-me. Não sabia se ia me aventurar naquilo novamente. Sentia-me grotesco. Mariana entrou na sala.

- Ei, vamos almoçar?

- Desculpe, doutora Mariana, preciso sair  respondi-a sorrindo.

Não olhei para trás, peguei as chaves do carro e o paletó e fechei a porta. No elevador, vi que Mariana estava atrás, ela até me deu uma satisfação vaga de que estava indo almoçar no shopping. Na garagem, despedi-me dela, fomos para direções diferentes. Liguei o som do carro e sorri; naquela momento, sorria de tudo; eu estava feliz, sentia-me um grande cara. As mulheres têm um poder inexplicável sob a gente, que o diga a minha amável leitora. Eis o néctar da vida.

Cheguei atrasado, como presumível. Havia se passado bem mais que quatro minutos da uma da tarde. Desta vez, a porta principal estava entreaberta, mesmo assim toquei o interfone.

- Suba! –disse a voz enigmática e lasciva.

Deixei a porta principal destrancada. Apenas entrei, subi as escadas no mesmo procedimento do dia anterior, embora com mais celeridade. Coloquei a venda, a porta se abriu, as mãos macias e quase místicas me puxaram e eu entrei. Nu, perguntei como anteriormente:

- Quem é você?

- Retire a venda!

- Oh, não! Vá falando, nunca conheci uma mulher como você... Mesmo sem vê-la, sem saber como é teu rosto, sem saber quem é você, já posso dizer que estou apaixonado...

Nisto, um baralho se fez na porta. Retirei a venda. Na minha frente, naquele quarto quase sem móveis e com cortinas brancas, as duas mulheres: Carolina e Mariana.

- O que está acontecendo? Ai, Meus Deus! – eu gritei.

Carolina estava de meia-calça preta, de vestido vermelho curto e com um chicote na mão. Ela estava linda. Mariana estava trajada de roupa social, mas igualmente sexy.

- Quem é ela? – perguntou Mariana direcionando um olhar distante para mim.

Não respondi. Ninguém disse nada. Tudo era tenso e nebuloso.

- Diga, seu filho da puta! Responda: Quem é ela?

- É... É Carolina, minha esposa... Carol, esta é Mariana, que trabalha comigo e...

- Não trabalho com você, somos amantes!...  retrucou, furiosa, Mariana.  Ei, mas espera aí, sei que esta vagabunda não é sua esposa; é ela, né? É ela a mulher misteriosa que você encontrou ontem? Diga, Orlando, seu puto, cafajeste!

Eu não tinha palavras, mas Carolina respondeu:

- Sim... Sou a mulher que pregou uma peça neste salafrário...  ela me chicoteava com força.  Mas é verdade, também, que sou a esposa deste homem, um homem desprezível... Agora sei... Seu filho da...

- Mentira! – gritou Mariana de repente.

Fiquei em choque, como  pode imaginar o leitor sob o olhar acusatório de nossa amiga leitora. Eu nada entendia, de fato. Mas agora entendo. Realmente a voz misteriosa daquela mulher que eu estava apaixonado era familiar, era a voz da Carol... Carolina... Minha esposa! Filha da puta! Enganou-me como se engana uma criança com um doce ou um vídeo-game e ainda me deu uma surra com aquele chicote endiabrado.

Repentinamente, as duas começaram a brigar, xingando-se com palavras feias, saíram do quarto para o corredor e Carolina rolou sacada abaixo. Morta. Chamei a polícia. Vieram. dois ou três policiais, depois foram chegando outros. Mariana contou a todos que era minha amante e o cadáver era minha esposa, um policial sopesou que eu era o criminoso. Não retruquei. Fui para a delegacia. Fiquei preso. Chamei advogado. Saí da cadeia. Mesmo respondendo em liberdade, não pude ir ao velório de Carolina. Todos me condenaram. Mariana testemunhou contra mim. Passaram-se alguns meses. Perdi o emprego e os amigos. Estou cumprindo pena.

Por Ricardo Novais

Rolezinho

Cena do filme “Christine - O Carro Assassino (John Carpenter, 1983), baseado na obra de Stephen King.

Eram 20 horas e 04 minutos. Eu estava cansado da faculdade. Curso de engenharia, muito chato. Não disse nada a meus pais, faltei na aula. Liguei para minha namorada, noite agradável para um rolezinho.

- Cami, vamos sair?

- Passa aqui em meia hora – ela gostou da ideia.

Não tinha ninguém na minha casa, saí pela garagem do prédio e o porteiro nem me viu. Carro todo preto, vidros escuros; nenhum curioso consegue ver nada dentro. Dirigi sete quilômetros, passei na casa da Cami às 20 horas e 39 minutos.

Paramos numa lanchonete. Comemos lanches, bebemos umas cervejas. Saímos. Calculei levá-la em um motel bem escondido, lá pela periferia da cidade, para foder a noite inteira. No meio do trânsito, Cami já resolveu ir adiantando os procedimentos. Ela abaixou a cabeça, abriu o zíper da minha calça e começou a me lamber. Liguei o som no talo, usando uma mão para beber uma cerveja gelada e de resto só para me concentrar na cabeça frenética daquela gostosa com os seios à mostra balançando no meu colo. Gozei na cara dela, foi um impacto violento...

Desci no carro fechando o zíper e lançando a long neck vazia bem longe, no meio de um terreno baldio. Cami também desceu do carro, meio atordoada, tinha batido a cabeça no volante, a testa estava sangrando. Olhei para todos os lados, escuridão de dar medo. Breu total. Era uma rua deserta, um bairro afastado que nem tem nome, não tinha viva alma naquele lugar; apenas um corpo jogado, uns cinco ou seis metros, para trás de onde eu tinha estacionado. Manobrei o carro, faróis apontados para a cena. Única luz na treva. Havia pegado o cara em cheio, provavelmente o pára-choque o atravessou acima dos joelhos. Estávamos assustados, Cami e eu. O homem, vestido de terno barato, todo ensanguentado e destroçado, parecia ser um desses crentes, talvez um pastor; uma bíblia de capa preta estava jogada perto do meio fio; ligando as coisas, julguei que a bíblia era dele; pastor filho da puta!

Cami me olhou, iluminada apenas pelos faróis acusatórios do automóvel e por uma lua débil, respirou fundo e disse:

- Renê, me leve pra casa.

- Mas não vamos mais ao motel?

Não fomos. Passamos rapidamente numa farmácia, que era caminho, compramos  uns curativos e a levei para casa. Em seguida, dirigi com o som no talo até meu apartamento, guardei o carro de ré na garagem do prédio – nem sinal do porteiro ou outro funcionário do condomínio; dei uma olhada no capô: amassado, pára-choque quebrado, mas sem maiores avarias.

Minha casa continuava vazia; entrei, tomei banho, comi uns nacos de nuggets que estavam na geladeira; fui para o quarto, dormi bem. No outro dia, era sábado. Mandei lavar o carro, trocar o pára-choque, mas o capô ficou amassado mesmo; pastor filho da puta! No final da tarde, liguei para a Cami. Rolezinho. Pernoitamos no motel da periferia.


Por Ricardo Novais

Ostentação

Imagem de um evento de 'rolezinho'. Foto: reprodução do Facebook.
Gilberto achava que as crianças estavam atarefadas demais; lições de inglês, espanhol, francês e até de piano tiravam o lazer dos filhos; sobrava-lhes o vídeo-game. Pouco, ele pensava. Não pode ser isto a educação de filhos, mas a mulher tinha outro conceito. Zuzu desejava filhos grandes, fortes, ricos; não suportava a ideia de se divertirem; perda de tempo, dizia ao marido.

Um dia, ao retornar ao escritório na hora do almoço, Gilberto teve um mau pressentimento ao ver uma criança vendendo bala no farol de esquina do prédio. Era um moleque mulato, pequenino, roupas sujas e puídas, mas que sorriu e lhe olhou alegremente. Incrível! Era de admirar o moleque correndo leve, levado, correndo alegre, intempestivo, feliz e saudável em meio a tanta indigência.

Se há alguma coisa importante neste mundo, pensou Gilberto, é criança saudável. Imediatamente virou o carro e entrou à direita na direção da escola dos filhos. Aguardou duas horas em uma lanchonete em frente ao portão escolar. Deu o sinal estridente no pátio do colégio. Rebentaram gritos de alunos ainda livres. Encontrou os filhos e os levou ao shopping. Brincaram, comeram, compraram, divertiram-se a valer. O leitor, que já foi menino, e a leitora, que por certo também foi graciosa menina, sabem que o trabalho infantil é simplesmente brincar de ser adulto; mas o contrário também acontece e, naquela tarde, o pai também era adulto brincando de ser criança.

Era uma tarde de sexta-feira, mas anoiteceu rápido. Quase sete da noite, estava na hora de ir para casa. Havia milhares de recados perdidos da esposa; ela queria saber dos filhos e das lições perdidas. Gilberto a respondeu dizendo que estava tudo bem; Zuzu enraiveceu-se, pegou um táxi e foi encontrá-los.

Repentinamente, na praça de alimentação, iniciou-se uma aglomeração. Pessoas de todas as cores começaram a gritar palavras de ordem; ao menos pareceram gritos de ordem engajados e outros apenas de pertubação da ordem, já que tudo era bastante desconexo.

- Gritos juvenis, disse Gilberto em tom de desprezo.

- Shopping é lugar de ostentação, retrucou a esposa.

Ostentação. As pessoas gritavam mais e mais alto, ameaçavam correr pelas escadas rolantes e davam ideia de que iniciariam um arrastão dos infernos. Eram jovens de expressões rudes, quase indolentes, embora parecessem ostentar-se numa passarela de fanfarrões.

Os frequentadores, jovens e velhos, do estabelecimento misturaram-se; as roupas caras, os bonés de grife, os tênis de marca, as bolsas de couro fundiram-se à atitude altiva de pedestal dos comerciantes e dos seguranças. A confusão tomou conta do lugar e o pau comeu.

- Gilberto, seu louco! Olha só onde você trouxe as crianças, no meio desse bando de maloqueiros... – Zuzu repreendeu, de forma dura, o marido; este nada respondeu à mulher, pegou os filhos pelas mãos, no meio da multidão e das lojas de ostentação, dirigiu-se ao guichê do estacionamento, pagou o ticket e entraram todos no carro, mudos e constrangidos.

Chegaram em casa da mesma forma, mudos e constrangidos. Antes de deitar-se para dormir, Gilberto redigiu um desabafo em uma rede social relatando a aventura do shopping. No texto, ainda teceu críticas à segurança pública da cidade por não proteger aos cidadãos de bem e aos seus filhos daqueles marginais que ousaram invadir os ambientes particulares deles. Terminou o desabafo. A noite já ia alta. As crianças já dormiam; Zuzu ainda não. Ela leu atentamente o desabafo do marido, curtiu o post.

Por Ricardo Novais
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