Ostentação

Imagem de um evento de 'rolezinho'. Foto: reprodução do Facebook.
Gilberto achava que as crianças estavam atarefadas demais; lições de inglês, espanhol, francês e até de piano tiravam o lazer dos filhos; sobrava-lhes o vídeo-game. Pouco, ele pensava. Não pode ser isto a educação de filhos, mas a mulher tinha outro conceito. Zuzu desejava filhos grandes, fortes, ricos; não suportava a ideia de se divertirem; perda de tempo, dizia ao marido.

Um dia, ao retornar ao escritório na hora do almoço, Gilberto teve um mau pressentimento ao ver uma criança vendendo bala no farol de esquina do prédio. Era um moleque mulato, pequenino, roupas sujas e puídas, mas que sorriu e lhe olhou alegremente. Incrível! Era de admirar o moleque correndo leve, levado, correndo alegre, intempestivo, feliz e saudável em meio a tanta indigência.

Se há alguma coisa importante neste mundo, pensou Gilberto, é criança saudável. Imediatamente virou o carro e entrou à direita na direção da escola dos filhos. Aguardou duas horas em uma lanchonete em frente ao portão escolar. Deu o sinal estridente no pátio do colégio. Rebentaram gritos de alunos ainda livres. Encontrou os filhos e os levou ao shopping. Brincaram, comeram, compraram, divertiram-se a valer. O leitor, que já foi menino, e a leitora, que por certo também foi graciosa menina, sabem que o trabalho infantil é simplesmente brincar de ser adulto; mas o contrário também acontece e, naquela tarde, o pai também era adulto brincando de ser criança.

Era uma tarde de sexta-feira, mas anoiteceu rápido. Quase sete da noite, estava na hora de ir para casa. Havia milhares de recados perdidos da esposa; ela queria saber dos filhos e das lições perdidas. Gilberto a respondeu dizendo que estava tudo bem; Zuzu enraiveceu-se, pegou um táxi e foi encontrá-los.

Repentinamente, na praça de alimentação, iniciou-se uma aglomeração. Pessoas de todas as cores começaram a gritar palavras de ordem; ao menos pareceram gritos de ordem engajados e outros apenas de pertubação da ordem, já que tudo era bastante desconexo.

- Gritos juvenis, disse Gilberto em tom de desprezo.

- Shopping é lugar de ostentação, retrucou a esposa.

Ostentação. As pessoas gritavam mais e mais alto, ameaçavam correr pelas escadas rolantes e davam ideia de que iniciariam um arrastão dos infernos. Eram jovens de expressões rudes, quase indolentes, embora parecessem ostentar-se numa passarela de fanfarrões.

Os frequentadores, jovens e velhos, do estabelecimento misturaram-se; as roupas caras, os bonés de grife, os tênis de marca, as bolsas de couro fundiram-se à atitude altiva de pedestal dos comerciantes e dos seguranças. A confusão tomou conta do lugar e o pau comeu.

- Gilberto, seu louco! Olha só onde você trouxe as crianças, no meio desse bando de maloqueiros... – Zuzu repreendeu, de forma dura, o marido; este nada respondeu à mulher, pegou os filhos pelas mãos, no meio da multidão e das lojas de ostentação, dirigiu-se ao guichê do estacionamento, pagou o ticket e entraram todos no carro, mudos e constrangidos.

Chegaram em casa da mesma forma, mudos e constrangidos. Antes de deitar-se para dormir, Gilberto redigiu um desabafo em uma rede social relatando a aventura do shopping. No texto, ainda teceu críticas à segurança pública da cidade por não proteger aos cidadãos de bem e aos seus filhos daqueles marginais que ousaram invadir os ambientes particulares deles. Terminou o desabafo. A noite já ia alta. As crianças já dormiam; Zuzu ainda não. Ela leu atentamente o desabafo do marido, curtiu o post.

Por Ricardo Novais
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