Panelaço

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Houve um pronunciamento do governo em rede nacional de rádio e tevê. Um barulho ensurdecedor de panelas sendo batidas ou em outras panelas ou em tampas de panelas diversas e que vinha das janelas vizinhas, irritava-me; era um momento de escrita. O leitor, que também é autor, bem sabe o quão o barulho agudo, uniforme ou disforme, pode prejudicar a saúde de um texto; de modo que me perdoe quem lê estas linhas mal acabadas, foram escritas sob a pressão dos adversários do governo.

Por certo que cada panela tem a sua tampa e esta se encaixa bem à comida que se cozinha ou que se estraga, apodrecendo pelo excesso de água, feijão ou macarrão gourmet; certo também que existem panelas mais profundas que outras. Aquelas que batiam, pelo som que ecoava delas, poder-se-ia dizer rasas, de pouca superfície e de muito teflon.

- Dita, vai à janela, por favor, e veja o que está acontecendo?

- Estão protestando, amor. Culpa do governo! Culpa dos desmandos do PT!

Não pude escrever. Fiquei escutando o barulho. Não liguei a tevê. O que o governo dizia não me interessava, eu precisava escrever. Então resolvi deitar no sofá e esperar. O tédio da escrita não é menor que o tédio da panela vazia; sim, pois percebi depois que nos bairros onde as panelas ficam cheias a custo não há o direito republicano do panelaço.

Esperei pouco, verdade. As panelas de pressão iam se cansando rápido, são pesadas e não foram feitas para fazerem macarrão gourmet. De modo que o barulho cessou-se, quase, completamente; não fosse o barulho de uma única panela vindo de um lugar incerto.

- E esse maluco que não deixa as pessoas em paz. Vou matar este cara! Que horas são agora, Dita?

- Nove e trinta e três, José Carlos.

Passara das nove e meia da noite e o barulho singular persistia. Percebi vozes no corredor. Não saí do apartamento, coloquei a cabeça para fora da janela e constatei todas as bocas famintas sem as panelas, curiosas e irritadas, perguntando-se de onde vinha o barulho. Resolvi abrir a porta de casa. Afinal, também é papel de autor a investigação, como certa vez me ensinou a dona leitora, que nos acompanha em silêncio.

- O que está acontecendo? – questionei a uma senhora magra e com nariz esbranquiçado por algum pó de maquiagem.

- Ora, não sabemos. Tem algum morador batendo uma panela a mais de uma hora, sem parar; e já é tarde... As crianças não dormem... Meu marido dá aula cedo na universidade... Precisamos descansar para poder trabalhar e produzir... Vou matar este cara! Que disparate!... Mas também, esse país de merda merece esses políticos...

- Não me parece que seja neste andar, acredito que seja no andar de cima. Vou matar este cara! – conjecturou um sujeito gordinho, parecido com uma porpetinha que se vende em boteco, e cortando a fala da velha de nariz branco.

- Culpa do PT! – comungaram os dois e os demais. Eu nada disse, apenas cruzei os braços e olhei para o elevador fingindo procurar alguma pista. Calma, senhor leitor politizado, não me tome por mau cidadão e eleitor de cabresto. Sou como o cajado descrito no Salmo 23, prezo pela segurança própria e do rebanho.

Dito isto, explico que os moradores incomodados começaram a ter hipóteses diversas que iam se alastrando por todos os andares; então descemos, todos, Dita veio junto, até o térreo. Lá havia já uma pequena multidão, olhavam para cima tentando identificar de onde vinha o pandemônio. Sim, senhor leitor mais atento ao dilema político, tem razão: de repente, os mesmos que antes protestavam batendo panelas contra o governo começaram a pedir ordem contra o paneleiro solitário que perturbava a paz e a boa convivência da comunidade do prédio.

O síndico, pressionado pelos moradores, saiu acompanhado de dois porteiros e mais cinco ou seis, talvez sete moradores; deu ordem expressa para que os demais aguardassem no térreo. Um quarto de hora se passou, uma ambulância estacionou na frente do edifício central.

Entraram os paramédicos do SAMU, embarcaram no elevador social correndo e carregando uma maca vazia e objetos salutares. Alguns minutos eternos depois se percebiam os passos descendo a escada. Consegui ver apenas a maca, passando célere pelo saguão, carregando um homem ensanguentado; logo atrás algo surreal: um sagui acompanhando a maca e batendo uma frigideira em uma caçarola, andava devagar e sem que ninguém o impedisse. Incrivelmente, o pequeno macaco entrou na ambulância. A sirene foi sumindo, sumindo no desafinado burburinho da cidade, e levando, julgo que ao hospital ou ao necrotério, o homem ferido ou morto e o macaquinho com suas panelas, quais não eram mais possíveis de se ouvir se ainda batiam, visto que na lei da vida das panelas o barulho urgente e imperativo as sufoca.

E foi só isto, nada mais. A pequena multidão dispersou-se rápido. Reinou no condomínio uma sepulcral ordem e a paz. Tornei a escrever naquela noite.


Por Ricardo Novais
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