Um cortejo

"Golconda", René Magritte.

Morreu-lhe o pai. Era uma manhã bastante comum e, de repente, fez-se extraordinária. Viver é difícil... Era necessário reconhecer o corpo, o corpo do próprio pai. 

- Defunto? - questionou-se.

Lembrou-se que logo de manhãzinha havia tomado café preto na padaria de esquina, com o padrinho, talvez algum irmão, tinha mais alguém presente. Desfez a lembrança do café e desandou à casa das necrópsias. Morreu-lhe o pai.

A hora demorava minutos eternos. Aguardou o tempo para sempre e ainda assim viu faltar alguns minutos; constatou, a vida há sempre de ser curta... Curtíssima!

Leitor, interrompo o conto para uma palavra íntima contigo. Sinceramente, desejo que esteja longe a tua morte, mas já pensou em que músicas quer que toquem em seu velório? Músicas bonitas, naturalmente; réquiens são assombrosos! Digo, confessando-te também sobre a questão, que em meu velório não gostaria de que rezassem a cartilha dos ofícios religiosos; nada de céu ou inferno, menos ainda purgatório que terei que despender recursos para a propina da salvação.

Tornando ao conto e à via dolorosa. De repente, viu-se seguindo, a certa distância, o carro fúnebre que transportava o morto; este rabecão era surpreendentemente branco com prefixos fúnebres das laterais pintados à cor preta.

- Que dor! - afirmou-se.

Era um cortejo quase solitário, embora não estive sozinho. Há uma multidão de homens, homens diferentes; disse certa vez um artista cujo nome não me recordo. O séquito da cidade sendo percorrido por homens diferentes a avistar-se todas as suas luzes débeis das ruas. Ruas e ruas de um asfalto molhado, como de costume, embora mais funéreo, de um acachapante calor no meio daquela geleira humana. A garoa a cair sobre os telhados das casas e sobre as paredes sem rostos dos prédios, com força; primeiro ao crepúsculo e depois ao firmar do dia como um tributo sincero e acolhedor de seu sentimento à abdução súbita.

Anoiteceu novamente. Lembrou-se outra vez da morte. Morte. Viu-se ao espelho, percebeu a própria alma e de algum outro. Escutou a garoa batendo à janela. Nesta cidade a garoa são lembranças que pertencem ao primeiro fio de vento que sopra o trovão infinito. Pois que tudo cabe no além-túmulo, até a vida; cabe também o último alento, o último assopro do juiz, o último gol do artilheiro, o último beijo da mulher amada ou o último gole de cerveja. Será que no outro mundo há cerveja? Não sei. Sei é que, como bem julga o amigo leitor e a amiga dona leitora, também se morre em vida, porque, muitas vezes, a vida inteira cabe dentro de pouca coisa, como um fone de ouvido dentro de um trem a percorrer uma extensão de trilhos eternos.

A vida e a morte, jazem separadas; por fim, lê-se no epitáfio.

Por Ricardo Novais
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