Vitrine

Jean Baptiste Debret.

Almoçávamos uma suculenta feijoada em um dia bastante ensolarado. O restaurante se localizava em uma região badalada da cidade, onde o passado, por certo, se alimentava de feijoadas menos deslumbradas. 

- Vamos tomar uma cerveja? – perguntei à Clarice que estava sentada ao meu lado, mas tinha os olhos perdidos pelo mundo.

- Sim, Heitor. Vamos, está quente – respondeu-me depois de uns segundos irritantes.

O amigo leitor que aprecia uma cerveja gelada que brinde comigo neste momento, pois a seguir o conto poderá ficar pouquíssimo saboroso e então torço para que o amigo tenha estômago de avestruz para lê-lo até o fim. A dona leitora eu desejo bom apetite!

Vá lá, ânimo! Tudo aconteceu em pouco tempo. Avistei um homem, maltrapilho, típico cidadão não contado no Censo do IBGE, parou à entrada do restaurante e então um segurança, enfiado num terno preto, naquele calorão, afastou o maltrapilho da passagem dos clientes. O sujeito, que definitivamente não era bem-vindo ali, permaneceu ao lado da entrada, em frente à vitrine que dava para o hall do salão de almoço.

Não tenho certeza se de onde ele estava conseguia ver dentro do restaurante, mas eu, apreciando o espetáculo, conseguia vê-lo quase perfeitamente; lá estava ele, parado, maltrapilho, provavelmente esfomeado.

- Clarice, eu acho que aquele homem quer comer...

Ela olhou de relance e respondeu sem muita vontade:

- Sim, Heitor. Deve estar com fome.

Vendo a apatia de Clarice e dos outros clientes do restaurante com relação à gastronomia alheia, acovardei-me. Mudei a visão, olhei para o celular, depois peguei o pote de pimenta, mexi no garfo, na faca, limpei-os um no outro e levantei o copo de cerveja... Bebi um longo gole. Mas tornei a visão. O homem maltrapilho lá estava, parado, ainda, imóvel como o cardápio pendurado na parede a exibir o mostruário de pratos de comida sofisticada. Sob o sol e refletido pela luz do meio-dia que batia forte na vitrine, o homem maltrapilho era parte da mobilha ou da decoração do ambiente.

Levantei-me. Fui até quase a porta do restaurante, olhei para o maître e retrocedi virando à direita no sentido da toalete. Mijei a cerveja, lavei as mãos, olhei-me no espelho. Tive ânsia de vômito e precisei vomitar a feijoada toda na pia daquele banheiro espelhado. “Por que diabos esse mendigo não me sai da cabeça? Porra! Esse filho da puta deve estar com uma fome do caralho! Foda-se!”, desgraçadamente, eu pensei isto, leitor, ou neste sentido, porque as ideias estavam atrapalhadas uma em cima das outras e não sei se pensei exatamente escrevi aqui; foi tudo muito rápido e, talvez, eu tenha também pensado muito alto porque um senhor, de camisa polo bege, qual pendurava um óculos esverdeados, olhou-me de cima a baixo, balançou a cabeça e riu discreta e cinicamente – tanto assim que só percebi esta atitude cínica dele porque eu já havia bebido bastante e todo bêbado é cientista social.

Voltei à mesa, olhei para Clarice, que estava entretida em outro mundo olhando para a tela do celular. Nada eu disse e ela nada percebeu, ou ao menos não quis dizer se percebeu como aquela feijoada tinha me afetado e me deixado atordoado; olhei para fora daquele salão, lembrei-me de um velho autor que dizia que as vitrines dos restaurantes chiques refletem os esfomeados, os esfarrapados e vale acrescentar ao pensamento que também espelham a desgraça de um mundo que sofre de inanição.

Alcancei a visão na vitrine daquele restaurante e não vi mais o esfomeado e maltrapilho que lá estava há pouco, parado, aguardando a migalha de uma mão invisível. Aquilo me entristeceu, por pouco tempo. Ao fim de cinco ou seis cervejas, eu havia me esquecido do maltrapilho e já mal me lembrava da vitrine reflexiva de sombras. A indiferença coletiva havia retornado à mesa solitária para nos fazer companhia.

Por Ricardo Novais

Sessão espírita

Imagem de Internet.

Os negócios não iam bem. Eu era formado recente, e escritório de advocacia tem que ter clientela. Minha clientela era a de meu sócio, o doutor Jader Zanzone. Doutor Jader era um velho de sessenta e poucos anos, muito branco, quase pálido e calvo, que era pai do Marcos, um colega meu da época da faculdade; como o Marcos foi morar na Europa, indicou-me de sócio minoritário do pequeno escritório de seu pai.

- Vamos dar um jeito, meu jovem! – dizia o Doutor Jader, sempre com um sorriso bonachão.

Verdade é que desde que o nosso maior cliente, o Bingo Zona Sul, findou na contravenção, entramos numa crise financeira. Os legisladores brasileiros cismaram que o jogo de bingo deveria passar de jogo de senhoras para jogo de azar. Azar o meu!

Acontece que o Doutor Jader não estava nem aí para aquele escritório, ele era rico e dono de fazendas no interior. Mas se compadeceu, talvez por mim, talvez pela meritocracia de fazendeiro ou ainda pela pura influência de seu melhor amigo, o Doutor Pedro Moura. Doutor Pedro era um advogado gaiato, também deveria ter passado dos sessenta anos, mas não aparentava mais do que quarenta. Era um senhor negro de barba branca, sempre alinhado em um terno cinza risca-de-giz e sapatos envernizados. Ele também era rico, e metido a líder espiritual.

- Vamos no centro espírita... Você vai conosco! Sua vida vai melhorar cem por cento, filho! – dizia-me convicto o Doutor Pedro.

- Vai mesmo, meu jovem! É uma coisa inexplicável, diviníssima! – completava Doutor Jader, sempre sorridente.

Eu engoli minha descrença e os acompanhei. Era uma sexta-feira, passara das dezoito horas. Entrei no local, muita gente vestida de branco. Apenas eu metido em um terno preto bem vagabundo. Doutor Jader e Doutor Pedro estavam alinhados em ternos caros e cinzas, possivelmente de grife italiana... Difícil recordar-se de tudo.

De repente, cessou a sessão comunitária. As pessoas dispersaram, como fantasmas. Então fui levado a uma sala, sozinho. Entrou um senhor. Em um primeiro momento, pensei ser o Doutor Pedro, dada a fisionomia, mas as vestes dele eram brancas; parecia até que usava uma batina.

O homem entrou fumando um charuto. Aquilo me incomodou, um pouco, mas eu nada disse. Um dialeto ininteligível começou. Lembrei-me dos padres católicos do catecismo que, em dado momento da cerimônia religiosa cristã, também falavam uma língua próxima e incompreensível; naquela época, eles diziam que era Deus falando com seus fiéis.

O negro, vestido de branco, fumando um charuto asfixiante, também falava a língua de Deus; pensei. Pensei, nada disse, outra vez. Controlei-me, mas algo estranho ocorreu.

A porta se abriu. Doutor Jader, branco como um fantasma bonachão, entrou segurando em sua mão direita uma garrafa de pinga, dessas de marca ruim, e na outra mão ele trazia uma galinha, uma galinha preta; pretíssima! Ele a segurava pelas asas e ela esperneava em desespero. Havia também entrado um porco, rosnando forte e todo arisco. Um suor frio correu sobre meu rosto. O mestre espiritual jogou sal grosso e batatas por todos os cantos, pegou uma faca grande e a fincou no peito da galinha preta. O sangue jorrou. Tive mais asco do que pena da galinha.

O porco lambia o sangue, eu quis ir embora. Não me deixaram sair, já estava terminando.

É triste ter que contar, leitor, mas é necessário ser fiel ao conto; é de meu ofício, doa ao leitor que doer. Perdoe-me por quaisquer constrangimentos, caro leitor e querida dona leitora. Nem todo lance de vida é prazeroso, feliz ou adequado aos costumes da civilidade. O fato é que o porco parecia estar possuído pelo demônio, dado aos gritos horríveis que dava cuspindo batatas, mas poder-se-ia também dizer ser uma manifestação de Deus. Eu sei que o mestre espiritual, ainda esfumaçando o lugar com aquele maldito charuto, dizia algo baixinho, sussurrando em homilia; Doutor Jader repetia ao estilo do terço-do-rosário. Por um breve momento, julguei ser uma sinfonia diabólica, devido a tanto sangue, penas pretas, batatas masticadas e cuspidas em formato de tridentes; no entanto, logo percebi que eu não estava ameaçado.

Nada era possível se compreender naquele altar, exceto que o porco chafurdava no mar de lama formados pelo sangue, cachaça e batatas; que focinho suíno aterrorizante! Por fim, repentino, um silêncio tomou conta do ambiente. Os dois homens fecharam os olhos, o porco parecia estar desmaiado e a galinha já não mais agonizava. Deram-me sete velas, cada uma de uma cor que, naturalmente, não me recordo quais eram.

Depois das orientações sobre as velas, fui para casa. Dormi mal naquela noite, tive pesadelos horríveis com porcos assassinos cuspindo batatas quentes mortais e com galinhas sendo dilaceradas por guardas do inferno. Logo cedo, acordei com minha mãe, católica apostólica romana, jogando as velas no lixo, irritada, rezando para que eu me firmasse na vida; desfez-se assim o trabalho espiritual. Há coisas que as religiões não explicam, mas é permitido competirem em meio à nebulosidade pela falta do aclaramento.

Como o conto precisa terminar, mesmo contra minha vontade, digo apenas que me demiti do escritório. Arranjei outro emprego longe dos doutores espirituais, e fiquei sem saber se sangue de galinha preta, misturado com cachaça, causa ressaca em porco ou se as penas pretas são eternas nas memórias do povo de Deus.

Por Ricardo Novais

O caso do bar

Edouard Manet - óleo sobre tela - 1864.

Entrei em um bar e, enquanto aguardava amigos para o happy hour, fiquei a observar dois homens que discutiam sobre política na mesa em frente. Discutiam tão alto que era possível ouvir com exatidão o motivo do entrave.

- Você é idiota, Carlos! É claro que o governo neoliberal traz progresso ao país...

- Não, senhor! O neoliberalismo enrique uma casta e o povão fica na merda! O nosso país deveria seguir a política dos países nórdicos...

Era uma discussão tão superficial que logo me desinteressei. Menos que um quarto de chope, os meus amigos chegaram. Alguma bebida, risos e piadas ao estilo do mestre Ary Toledo depois e eu já estava meio bêbado; meio bêbado é um eufemismo, caro leitor, já que não existe ebriedade pela metade.

- Então você não acha que o campeão de 87 é o Flamengo? – questionei um.

- Claro que não, Heitor! É o Sport do Recife...

Embora fossemos trintões, a nossa discussão era sobre futebol e coisas relacionadas ao ambiente de garotos da 5ª série.

De repente, olhei para frente e vi os dois camaradas que estavam discutindo política saindo do bar, juntos e abraçados, porta fora. A dona leitora bem sabe, a curiosidade alheia é a salvação do tédio do espelho. Então chamei um garçom e lhe perguntei se sabia quem eram aqueles dois.

- Não sei, senhor. Mas acho que se conheceram hoje. Eles chegaram antes do senhor... Bem, quando eles chegaram eu ouvi eles falando... Apresentaram-se formalmente... Acho que tinham marcado o encontro pela internet. Por quê?

- Por nada.

Acabei de beber, dei um abraço nos meus amigos e saí do bar. Poucos metros, vi alguém caído na calçada. Aproximei-me, já havia umas cinco ou seis pessoas envolta. Reconheci o sujeito agonizante na calçada, era um dos homens que estava no bar discutindo política, jaz moribundo; não tinha sinal do outro.

Um senhor velho, de barba branca bem rala, que parecia velar o local, abaixou e sumiu o relógio do morto. Veio mais gente; moradores de rua, seguranças, funcionários do metrô, executivos que estavam saindo do trabalho e duas mulheres da vida e um travesti alto.

A esta altura, o morto já tinha perdido a carteira, o celular, a gravata e a honra política; chegou a polícia. A polícia chamou o SAMU. O cadáver, mais político do que nunca, aguardava o rabecão e o seu esquife.

Passei bem um quarto de hora a admirar o espetáculo da morte na república. Depois me afastei, devagar, reflexivo de quem seria o cadáver, de que lado do Fla-Flu ideológico ele se encaixava, em vida e em morte; cheguei em casa e fiquei o resto da noite acordado. Procurei e procurei uma posição política e de ética em uma rede social da internet. Não achei nada além de julgamentos republicanos, esparsos e rancorosos. Perto de amanhecer, eu desisti; e fui ler as notícias esportivas.

Por Ricardo Novais
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