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Membros da Academia Brasileira de Letras. |
"Dedicado a todos aqueles autores que não mais estão nas vibrações terrestres e para alguns outros que agora moram em altas esferas espirituais".
Numa certa manhã, João Lebre acordou aborrecido.
Olhou para escrivaninha velha, o computador velho, as letras velhas e respirou
fundo. Mal se vestiu precisou ir à rua, caçar ar puro, gente outra, ideias
novas. Dobrou a esquina, viu muita coisa velha na nova gente. Os homens andavam
com movimentos céleres e soturnos; as mulheres tinham a mesma agitação, mas os
gestos eram mais suntuosos. Lebre parou alguns instantes, pensou em tornar ao
lar, entretanto, dispôs-se a andar, aumentou o passo, atravessou outra calçada,
andou, andou, andou e chegou à frente de sua própria casa.
- Que acontece, João?
João respirou fundo, novamente. A mulher nada
entendia; os filhos pequenos, menos ainda.
- Tenho que escrever... – Lebre disse isto e
trancou-se no escritório às pressas.
Pegou do cigarro, acendeu-o, mas não tragou
dele. A fumaça rapidamente tomou conta do ambiente. Deixou pousar as costas à
cadeira bege, iniciou uma homilia mental em conjunto com uma observação de
memória recente.
Há ali uma grande biblioteca naquele
compartimento, herança do pai. Os livros, quietos, olham para o escritor, e
este retribui. A coleção de obras-primas de autores clássicos contém Flaubert,
Eça, Eco, Rosa, Dostoiévski, Tolstoi, Kafka, Machado, alguns outros mais
recentes, outros ainda mais antigos, têm uns jogados ao pé da estante, livros
de diferentes tamanhos, cuidadosamente organizados como títulos de nobreza. Um
exemplar da grande literatura fica exposto em mesa central: Em Busca do Tempo
Perdido, do romancista Proust. A esta altura é este autor francês o que mais
lhe chama a atenção e mais insiste por repreender os seus modos de escrita e as
suas preferências de criação literária.
João Lebre escreve livros do que a crítica chama
de autoajuda, embora também se aventure pela ficção juvenil. Ele é escritor
renomado nestas duas áreas. Grandes editores o publicam, grandes revistas
listam suas obras entre as mais vendidas e grandes livrarias compram e vendem seus
livros. Até o presente momento, ele é bem-sucedido.
No entanto, o célebre escritor sente em suas
entranhas a necessidade de volumosa criação literária. Anseia com dor estomacal
adentrar ao rol de maiores literatos do mundo, reservar o quanto antes a cadeira
escura onde possa tomar chazinho das cinco da tarde. Perceba, senhor leitor, aí
é que está toda aflição e desgosto do autor; como ser um grande literato,
renomado nos salões letrados, se só escreve livros de segunda categoria?
Foi àquela sala, sob a escrivaninha e a tela
onde deveria preencher as linhas, exatamente para forjar um método de trabalho;
a metodologia da criação.
De repente, gritou à mulher:
- Agatha, é preciso pintar esta parede aqui!
A mulher, correndo a acudir o marido, sem nada entender,
já que o escritor não era dado a caprichos tolos, teve apenas ideia para
pergunta prudente:
- Ora... Mas o que há?
- Não tenho ideias, mulher... Não tenho ideias!
João Lebre pareceu um louco, andou de um lado a
outro do escritório, levou a mão ao queixo rapado, gesticulou coisas
ininteligíveis à esposa, esta, por sua vez, nada disse e somente deixou-se
paralisada ao canto do ambiente próximo à janela que dá para o segundo andar.
- Preciso que esta parede seja pintada de
branco, impecavelmente branca, toda branca, branca, branca... – esbravejou ele
em meio da afetação. – Não há de ter nenhuma manchinha sequer; nenhuma! Uma
parece alva, clara, brilhante que me traga ideias brilhantes... Isto! Terei sim
aspirações brilhantes, divinas... Voilá!
Assim foi. Pintou-se toda de branco a parede
lateral, que fica de frente para a velha escrivaninha, onde se encontra o velho
computador usado para os textos novos do escritor. No primeiro dia, porém,
nada. Não que as ideias não viessem, vieram. Lebre chegou as escrever quase 20
páginas de prólogo, mas não foram boas... Escreveu tanto porque foi linha após
linhas sem parar. Quando resolveu descansar um pouco da escrita, resolveu
também ler o escrito; fez ele mal nisto; pois terminado estas linhas percebeu
que os mesmos livros o fitavam do mesmo lugar, de modo que os autores clássicos
devam-lhe recado mais claro que a parede: “Não está bom, João!”, foi a
sentença. Proust foi ainda mais enfático: “Está uma porcaria, meu amigo da
América! Escreva coisa melhor para não ser confundido com algum selvagem ou
qualquer homem que pega da pena...”.
A depressão o engoliu. Fez a mesma rotina de
algumas semanas. Saiu à rua, andou, viu gente nova e coisas velhas, tomou ar às
ventas, a fumaça preta que ele inalou fez tossir seu âmago e voltar à
escrivaninha.
Refletiu, sopesou, conjecturou e resolveu:
- Mulher, daqui em diante eu só escreverei como
os homens dos áureos tempos da literatura, com tinteiro e pena.
Não estava sonhando e não foi delírio
precipitado. Tinha de qualquer maneira ter hábitos mais apurados, galicistas, à
moda da boa escrita. Foi tomar até aulas da maneira nova, quer dizer, da velha;
matriculou-se em curso de velhos modos de escrita. Aprendeu rápido. Sim, dona
leitora, as coisas de charme e elegância são compreendidas com gosto e
facilidade – ainda mais se for de época de ouro.
Tornou nosso João Lebre à tentativa de criar
algo que o elevasse aos deuses da boa literatura. Entretanto, outra vez, nada.
Ele escreveu com tinta verde em papel branco e não espremeu nada do cérebro.
Depois foi mais excêntrico, ciosamente descansou
a pena no tinteiro com tinta branca e em seguida a pousando ao papel verde
articulou escrita com mão trêmula. Mas as letras não deram sinal de nenhum
fruto de boa esperança.
E você, hein, amigo leitor que meramente lê, não
valoriza os esforços incríveis do processo criativo de um homem letrado? Oh,
não! A dona leitora, que não tem mesmo um gênio fácil, já vem exclamando:
“Quanta maluquice!”.
O que se sabe é que o escritor carregou o olhar
com a angústia daqueles que fracassam na vida. Mas, ora, se João Lebre é famoso
e renomado, homem de sucesso na sociedade, não há de ser nada. Por este tempo
lhe telefonou um importante editor da cidade querendo urgente reunião com o
autor.
- João, lançamos teu livro, Uma Marca Para o
Alcance dos Sonhos, e foi bem recebido, mas, sabe como é... Os problemas
ultrapassam-se com rapidez cibernética... Sendo assim, preciso que escreva
outro livro...
- Mas outro?
- Sim, mas não é nada demais. Mude apenas uns parágrafos,
umas frases, e só! Você é um gênio, meu rapaz; continue apenas aconselhando
como na outra obra, que assim vende... O título eu já tenho...
- Já tem? - Sim, tenho. Veja: Como Ser Feliz
Antes de Dizer Adeus; que tal, hein? E o subtítulo é: Aprenda a Viver em Tempos
Velozes. Sucesso de venda garantido, meu amigo.
E foi. Assim que o escritor terminou, em três
dias, a obra e entregou-a ao editor, ela vendeu, em outros três dias, milhares
de exemplares, e, apenas na primeira semana, já havia resenhas acaloradas em
sites e blogues do gênero. Em quinze dias já frequentava lista de livros mais
vendidos de uma revista de grande circulação no país.
Veio dinheiro, elogios dos leitores, prêmios de
jornais e de novas mídias, entrevistas em programas de tevê e de rádio. João
Lebre ficou feliz com os primeiros tapinhas às costas. Sentiu-se até vaidoso e
grande homem das letras. Até que um dia acordou e viu-se novamente diante das
obras clássicas o fitando da estante da sala de escritório... “Malditos autores
clássicos! Malditos!”, exclamou ele, subitamente.
Ao café, o escritor engoliu a primeira xícara, e
sentou-se à mesa com a mulher. Olhou para a porta do escritório e, de lá, ouviu
as vozes dos autores, entre as quais a embaraçosa frase de Proust: “Só escreve
porcaria, João!”. Iniciou uma conversa assustadora com eles, a mulher ficou
estática sem nada entender. Tratou de despachar os filhos à escola e observar o
marido. Ele, repentinamente, aquietou-se; tinha ideias perfeitas; mesmo
desvairado ou absorto. Repetiu os pensamentos e narrações de personagens que
acabara de criar na cabeça; depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a
uma das janelas. Tornou à escrivaninha; relutou, mas recorreu à metodologia da
criação.
Abriu a página em branco do computador e
escreveu uma única palavra com fonte Arial 18: Nada. Não adiantou, não
conseguiu escrever... Nada. Viu um exemplar do bruxo do Cosme Velho ao pé da
estante e resolveu calçar luvas para melhor destilar as ideias do cérebro ao
texto; entretanto, isto não resolveu a falta de inspiração. Tentou também mudar
o tamanho e a fonte das letras, mas foi fracasso comovente.
Então que alcançou a maior bizarrice de sua
metodologia da criação. Retirou toda a roupa, ficou nu em pelo sentado à frente
do computador. O ar gelado ligado na mais baixa temperatura, a esposa entrou à
sala de surpresa e, de fato, surpreendeu-o nesta esquisitice e deste modo
escandalizou-se:
- Que isto?
- Não se vexe, mulher! Não se assuste, querida!
O processo de criação não pode ser preso, tem de ficar livre...
- Que frio é este, João? Vai ficar doente, João.
- Não, mulher. O ar gelado traz ideias frescas e
boas...
Em três semanas o escritor pegou grave pneumonia
e nenhuma ideia fresca – ou as ideias derreteram assim que a empregada abriu a
janela e o primeiro raio de sol entrou ao recinto.
Outra vez importante editora queria ter com ele.
Desta vez foi alguém à casa do escritor, mas o procurador não conseguiu falar
ao artista. Foi então que o editor foi pessoalmente ver João Lebre.
- Que tem?
- Peguei uma friagem.
- Lá vão seis meses – disse o homem – que não
nos manda seus textos brilhantes, João. Perguntam se perdeu o talento.
- Talento?
- Sim, talento de Deus!
- Não diga isto, senhor.
- Venho propor trabalho a você; dez textos
curtos para blogue; leia o contrato, é coisa certa, o editor virtual é
responsável e não publica comentários de leitores críticos... Sua reputação
está assegurada, só leitores que se beneficiaram de teus conselhos serão
publicados na página. Os anunciantes são bons, tua porcentagem é justa; veja!
Conforme for o sucesso dos page views reajustamos os termos do contrato. Que
acha?
- Deixe-me ler.
Não leu, estava muito doente. A mulher leu para
ele em voz alta. O escritor assentiu com um gesto.
- Mas o primeiro texto é pra já – ilustrou o
editor. – É coisa rápida. Viu que as doenças das pessoas mudaram? Pois então,
escreva sobre os novos traumas da sociedade; nada de apontar soluções, somente explique as desgraças novas e deixe que as pessoas tirem suas próprias
conclusões. Agora as pessoas querem refletir, saber de tudo ao mesmo tempo e
não gostam de mandamentos que as digam como proceder para superar seus
problemas e suas amarguras... A primeira leva de posts será a campanha: Seja
Antenado. A segunda virará moda nas redes sociais: #QueGentileza.
- Que significa isto?
- Nada. São textos para novos heróis do mundo,
só não podemos dizer que eles querem mudar alguma coisa; entende?
- Ô gentileza...
- Ô, e que gentileza!
João Lebre compôs a primeira obra do acordo e
entregou-a ao editor. Não perdera a genialidade de escrever dando conselho aos
problemas alheios; ironicamente não conseguia resolver os próprios dilemas.
Sucesso foi o novo lançamento, grande sucesso.
Trazia letras balofas geniais, sacadas de bondade divina e generosidade ao
semelhante. Os outros textos vieram ao poucos, mas cumpriu-se o prazo.
Conservara, no entanto, a biblioteca e os
autores clássicos a fitarem-no naquela maldita saleta de escritório; mas passou
a evitar a custo carcomer todas as noites à escrivaninha, para não cair em
novas apostas e em velhas frustrações.
Assim foram passando os anos, até que em certa
manhã as mesmas aflições de outrora o fizeram tombar diante da velha
metodologia da criação. A fama de João Lebre dera-lhe definitivamente o primeiro
lugar entre os autores de autoajuda e também entre os juvenis; contudo, em sua
biblioteca de escritório ele continuava o último dentre todas as prateleiras.
Verdade que manteve ainda as vicissitudes de outro tempo, acerca de suas
criações; porém, estas vinham a ele agora mais calmas, serenas. Não havia mais
entusiasmo nas primeiras linhas, nem repulsa depois do primeiro capítulo; tudo
se misturava harmonicamente entre o deleite e o tédio – creio que deverias lhe
ter dito antes, leitor, mas então digo agora; a pneumonia do escritor agravara
em conjunto com as outras doenças psíquicas.
Comprou uma cadeira de madeira anosa pintada de
marrom-escuro, colocou ao lado dela uma espada de decano adquirida em loja
ordinária de antiguidades, passou a tomar chá, todos os dias, rigorosamente às
cinco da tarde, assim podia escrever na busca de sua grande obra e sonhar com
nomeações mais altas. Mas ele tratava tudo com prudência e parcimônia. Quando o
talento o intimava, ele sentava para escrever devidamente vestido com o fardão
de crepe francês verde-escuro com folhas de louro bordados em fios de ouro e um
chapéu de veludo preto com plumas brancas. Ele não fora agraciado com título de
letrado, mas assim pareceu-lhe que as ideias genuínas viriam sem pestanejar; afinal,
pensou ele, nunca se sabe quando o talento será laureado e, portanto, deve-se
estar sempre pronto para a ilustre e elevada pose que vai à orelha do livro.
Nada disto veio a ele, pobre diabo! Pior, suas
doenças não sossegavam e tornaram-se maléficas. A doença do pulmão avançara com
exagero; foi quando lhe apareceu em casa outra vez o editor, que não sabia da
enfermidade, e ia dar-lhe notícia da nova depressão da humanidade, e pedir-lhe
textos desta lavra de última moda. A mulher, indócil desgraçada, referiu-lhe o
estado do marido, de modo que o editor entendeu calar-se. Mas Lebre falou:
- Mais textos?
- Mas é para quando estiver bom de saúde –
concluiu o editor.
- Logo que a febre decline um pouco – respondeu
o escritor.
- Até logo, meu amigo.
- Espere – disse João Lebre – escreverei desde
já dois textos, um pela primeira ideia que nascer no cérebro e o outro pelo
resto, que não é nada nem tudo, o resto será apenas o resto ou o que me resta
de criatividade.
O escritor disse as palavras acima e caiu em sono
profundo. O editor cumprimentou a esposa do convalescente e se retirou,
preocupado, como todo bom marchand, em intervir no processo de criação de outro
artista.
João Lebre, magnífico intelectual desta terra de
literatos, morreu naquela mesma noite, às dez horas e cinco xícaras de chá. O
funeral foi vultoso, digno mesmo de um homem importante e de sucesso. Seus
leitores compareceram ao velório em grande número; os autores clássicos de sua
biblioteca, não, não compareceram ao funeral. Proust, ao saber da morte do
brilhante escritor brasileiro, abanou sutilmente a cabeça três vezes, pousou a
mão esquerda ao queixo, ergueu à meia altura uma xícara de chá e disse em baixo
tom no meio da biblioteca: “Aos esnobes e aos amadores”.
*Este conto
foi publicado originalmente no livro ‘Trem Noturno’.