Três vezes me negarás


Muitas vezes se usa palavras frequentes. Frequentes como as diversas rotinas que se cruzam todos os dias. O amigo leitor e a querida leitora, tão habituados às rotinas, tenham em mente que este conto se trata de coisa tão rotineira como feijão-com-arroz. Embora nem sempre haja feijão e nem arroz no prato de todos; ao contrário do que pensa o excelentíssimo presidente da república.

Excrescências de ideias rasas acerca do enigma da fome à parte, era hora do almoço. Saí para almoçar, sozinho, com os olhos na tela do telefone celular. Pelas redes sociais, tentei me inteirar dos acontecimentos tragicômicos que teimam em assolar o país em suas manhãs cinza-escuras.

Desci do elevador já dentro do shopping center e, poucos passos, ainda com os olhos dentro da tela das redes sociais, cheguei à praça de alimentação. Entrei na fila do restaurante fast food, pedi uma mumificação comestível qualquer pelo número de ordem ou pelo nome descrito em inglês, não me recordo, e aguardei. Poucos minutos, a bandeja estava pronta com aquela gororoba publicitária.

Ao procurar um local para me sentar na praça de alimentação, irritou-me não haver uma mesa vaga. Tive de me sentar naqueles bancos com balcão alto, e ainda ao lado de uma senhora com uma criança.

Sabe, dona leitora que tem filhos, deixe de levar seus rebentos aos shoppings; leve-os ao parque, ao cinema, à igreja, à exposição da Tarsila do Amaral, ao bar... Oh, não, amiga leitora! Não falo em tom de ameaça ou deboche, acredite! Embora este autor que vos escreve não tenha dons pedagógicos, neste momento, a escrita está em minhas mãos; de modo que, sobremaneira, poder-se-ia crer que a educação das crianças estará, irremediavelmente, comprometida se a escola delas for o pátio de um shopping center.

Sentado naquele banco com balcão alto naquela praça de alimentação tão vulgar, iludindo as retinas nas balofas redes sociais e almoçando aquele lanche quase que na velocidade da luz, demorei alguns segundos a perceber que havia se aproximado um homem.

- Boa tarde! Desculpe... O senhor pode me pagar alguma coisa de comer? Estou...

- Desculpe! Não tenho dinheiro, estou só com cartão...

- Pode ser qualquer coisa... Tenho fome. Estou...

- É que não tenho. Só estou com o cartão mesmo.

- Mas pode comprar ali na lanchonete... Lá fora a coxinha é dois reais. É que estou desempregado. Estou...

- Desculpe, não tenho!

O homem balançou a cabeça e foi indo embora. Fiquei olhando ele se afastar, devagar. Trajando uma vestimenta de cunho social: uma calça azul-escura, camisa branca de manga comprida, sem paletó, não alcancei os sapatos, mas enxerguei a mochila magra e surrada nas costas. Ia indo, indo... Ele pediu ainda comida em mais uma mesa, e também teve seu pedido negado. Então, de repente, sumiu na multidão.

Momentaneamente, distraí-me e tornei os olhos ao smartphone. Mas algo aconteceu. Deu-me um estalo, violentíssimo; era como se eu tivesse levado um soco na boca do estômago.

Antigamente, eu via um céu tão azul. Nunca mais o céu foi tão azul. O céu ficou cinza e o nada existente é pedir demais.

Em meio a uma confusão de sentimentos, propriamente humanos, onde a maldade se avulta menos do que a covardia de ser indiferente, rompi o portão da emoção genuína. Tal qual àquela passagem bíblica: Três vezes eu havia negado aquele homem, um pedinte com fome.

Joguei o resto da comida fora e guardei a bandeja. Descobri cinco reais perdidos na carteira. Levantei-me, de certo, um pouco desorientado, e fui atrás do homem para saciar sua fome. Como imaginas, quem ainda tem estômago para ler estas parvas linhas, não o encontrei.

Dei três voltas incompletas na praça de alimentação, fui até o extremo do corredor das inalcançáveis lojas de joias e saí pelo outro lado do shopping. Aquela caça deixou minha vista fadigada. Nisto, outra vez, numa franca emoção dos que sabem que ter benevolência é ter audácia, quase derrubei uma lágrima – ora, sabemos que toda emoção vem da paixão fugaz; de maneira que por pouco uma lágrima comprida não escorreu de cara com conhecidos naquele lugar de frias paredes de mármore.

Repentinamente, uma angústia serena me acometeu. Percebi que há coisas tão imponderáveis que não conseguimos compreender, como se estivéssemos dentro de um romance russo. Vivemos como os “Os irmãos Karamazov”, onde a nossa personalidade é formada por um lado místico, por um lado globalista, por outro lado selvagem, ainda sendo composta por um lado oprimido e, por fim, por um lado tirano.
  

Tão adiantado foi o fracasso da empreitada aqui contada, que é crucial levar a cabo este texto. Se não neste ponto final, nesta vírgula. Ainda porque o horário do almoço findou-se; e as tardes de trabalho também são cinzas nesta cidade. Mas antes de ir-me deixo diante do leitor um espelho, e assim revelo o personagem cardinal deste conto.

Por Ricardo Novais
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