Avestruz, na Cabeça!


Zé da Zebra é meu tio. Há alguns meses já passados fui visitá-lo na Gâmboa, bairro do município do Rio de Janeiro e Estado de mesmo nome, mais precisamente entre a Praça Mauá, a zona portuária e os ‘malandros da velha guarda’.

Meu velho tio, bonachão, sempre sorridente, gosta de um chopinho, não vai à praia, torce pelo Botafogo e tem o vício da “fezinha” no jogo do bicho. Nunca conseguiu quebrar a banca e elevar-se ao patamar sobre-humano. Ele sempre foi mesmo um ser humano.

Os seres humanos, como sabe o leitor – aqui aceitando os ensinamentos de Jorge Furtado –, são animais mamíferos, bípedes, que se distinguem dos outros animais, denominados bichos, justamente pela sua capacidade de raciocínio altamente desenvolvida.

Os bichos, por sua vez, geralmente se caracterizam por serem animais ovíparos ou mamíferos, como os seres humanos, no entanto, segundo a ciência, não possuem capacidade altamente desenvolvida de raciocínio. Contudo, os bichos também dão nome a este entretenimento tão apreciado por alguns seres humanos, incluindo o meu lúdico tio carioca: o jogo do bicho.

Por tal costume, os homens de bem denominam meu tio de contraventor. Mas ele é tão boa gente que fiquei pensando nos motivos que deram origem ao seu mau vício e, desde modo, naturalmente fiquei curioso sobre a origem deste jogo tão enraizado na cultura do povo brasileiro – ops!, digo, nos hábitos do "seu" Zé da Zebra.

Dizem as línguas mais antigas da Baía de Guanabara que o polêmico jogo do bicho surgiu no Brasil no início da República pelas mãos do velho Barão de Drummond. O aristocrata decidiu fazer uma campanha para conseguir reerguer o jardim zoológico de sua propriedade, em Vila Isabel, em pleno Rio de Janeiro de fins do Império. Eram tempos efervescentes aqueles... e difíceis. O Barão também passava por dificuldades.

Assim, o velho fidalgo listou os 25 animais existentes no espaço e lançou o jogo, estipulando quatro números para cada bicho, que formam as dezenas de 00 a 99; como ilustrado na cartela acima, que, por sinal, não é minha!, fique-se claro: apenas a tomei emprestada dos objetos de fé do meu querido tio. De toda forma, o critério é usado até hoje.

Inaugurado em 4 de julho de 1892, a imprensa e a alta sociedade carioca festejaram a novidade que o barão criou para atrair mais gente ao seu jardim zoológico, que tinha também restaurante, hotel e outros passeios. Mas os vigilantes da lei logo apontaram a ilegalidade do jogo. Ih, deu zebra!... Notavelmente, como percebeu o leitor pouco malandro, este animal inexiste relacionado na cartela daqueles que tentam a sorte grande; o ofício da zebra tem como objetivo apenas o sobre-nome alheio – como o de meu amável tio – as regras da loteria esportiva e a graça que vem mesmo do puro azar.

De tal modo, entre idas e vindas, o jogo do bicho começou a funcionar no Brasil. E essa ambiguidade entre legalidade e ilegalidade manteve-se pelas décadas que o jogo foi se popularizando. Finalmente, a lei de contravenções penais, decreto 3.688, de 3 de outubro de 1941, considerou efetivamente a proibição dos jogos de azar no Brasil, prevendo prisão (de 4 meses a um ano), multa e fechamento do estabelecimento quando descoberta a prática do jogo do bicho.

A sua proibição, no entanto, não inibiu a prática. Por tal motivo é comum vermos os pobres bichinhos pulando de galho em galho levando a sorte aos seres humanos e também fugindo daqueles que, ou por pouca fortuna ou por obrigação, vivem a persegui-los. Os chefes do jogo, os chamados bicheiros, começaram a tornar-se cada vez mais poderosos com braços em agremiações populares como as escolas de samba e na política – também em alguns clubes tradicionais de futebol da zona norte –, com o apoio indireto a políticos.

Meu tio, que nasceu na Gâmboa, mas frequentemente é encontrado no pitoresco bairro de Vila Isabel, orgulha-se de ser taxado de contraventor encantado dos jogos de azar – ou sorte. Diz o "Compadre" Zé da Zebra: "É avestruz, na cabeça!", e brinca galhofeiro, fanfarrão que ele é; mas, da última vez que o visitei, também constatou aborrecido e abanando a cabeça para os lados demonstrando certo desalento: “já vai longe o tempo em que o distinto chefe de polícia sorria ao bom malandro vestido de terno, cartola e bengala”.

Ontem chegou a notícia que ele morreu. Oh, não! Não foi de explosão à bomba ou de embate com federais; foi ataque fulminante do miocárdio. Maldito avestruz! Deu galo na cabeça... Ou era pato*?

Que descanse em paz o "Compadre" Zé da Zebra! Embora tanto os bichos, que hão de roer-lhe as carnes no túmulo, como os seres humanos, que podem querer medir-lhe a idade dos ossos nas coisas futuras da arqueologia, possam importuná-lo no campo santo da eternidade. De modo que nem a morte é garantia de sossego e sorte.

Assim como meu finado tio Zé da Zebra, que tinha fé no avestruz, ou de outro que fora afortunado pelo macaco, pelo leão, pela cobra ou por uma fauna inteira que quebre a banca, muitos seres humanos ainda hoje também apreciam a "fezinha" no jogo... Coisas obscuras da sorte, mas, neste caso, perceba: "foi pura zebra*!":



Por Ricardo Novais

* Esclarecimento para dar sorte e despistar o senhor policial: Não há zebra nem pato no jogo do bicho. Perceba o flagrante de discriminação no mundo animal; onde estão as ONG's que defendem a natureza nestas horas? A zebra, mais malandra, apenas cumpre seu ofício. Mas o pato já se manifestou em petição: "Obstante, azar do jogo do bicho!".

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