Arte de Liz Bittar. |
Mal
dona Gorete fez soar o estridente sinal da escola, ouviam-se os berros pelos
corredores:
-
Ô, mano, tem briga! Na saída eu te pego! Eu te pego lá fora!
A
correria tomou conta de tudo. Eram livros e cadernos sendo ajeitados e
amassados às pressas dentro das mochilas; réguas de acrílico sendo esquecidas
em cima das carteiras e chicletes mascados sendo guardados de improviso embaixo
das cadeiras; lápis, canetas e borrachas ficando jogadas pelo chão da sala; e
uma sintonia violenta de garotos indo para o mesmo lugar. As meninas também se
ajeitavam mais céleres que o habitual.
Quando
me aproximei, um pouco assustado, do portão de saída do colégio, escutei meu
nome:
-
Pedro! Pedro! Espere...
Era
o Edu, meu colega de classe. Estudávamos na quarta série, embora ele fosse
repetente e mais velho. Era difícil compreender como Edu conseguiu perder um
ano letivo numa escola em que as ideias disciplinares de ensino alcançam a
progressão continuada...
-
O que foi?
-
Acho que dois moleques estão brigando na praçinha lá na rua de trás; ande,
vamos lá ver!
-
Não posso, minha mãe está me esperando...
-
Ora, não seja mariquinha. Vamos, vamos logo!
Saíamos
instigados pelo inesperado e pela imaginação da briga, sob os olhos
desconfiados de dona Gorete. Possível que a megera inspetora de alunos tivesse
percebido algo estranho, já que garotos e mais garotos insistissem em sair
primeiro que outros como se todos estivessem ao mesmo tempo atrasados para
algum compromisso importante; mas dona Gorete apenas pediu que andassem em fila
e mais devagar. Ninguém a obedeceu. Meu coração já saltava à boca, Edu falava e
eu não o ouvia; eu não prestava atenção a mais nada, só às pernas andando
frenéticas e com destino já decidido; era como se coisa extraordinária fosse
acontecer naquele início de tarde. E aconteceu...
Uma
pena! Não cheguei a tempo de ver um moleque branco, sardento e ruivo, com cara
de retardado, ser esmurrado por outro; este que batia com gosto era mais alto,
provavelmente mais velho, forte, ou gordo, rosto amarelo e cabelo preto e
crespo. Todos em volta gritavam palavras de ordem – eram resoluções próprias da
molecagem. Algumas meninas estavam presentes e riam, com algum requinte de
crueldade, a um canto pouco mais afastado do centro da praça onde se dava o
embate.
-
Orra, meu! Porrada nele! Levanta, viado! Bundão!
Edu
engrossava o coro de insultos contra o garoto que estava ao chão sendo pisado
pelo gordo. Eu não ajudava nos xingamentos, apenas ria. Ri muito, gargalhei
até, achei engraçado e interessante deveras a desgraça daquele moleque que eu
nem sabia o nome. Passado uns quinze minutos, talvez mais – os eventos
divertidos passam tão rápido... –, o valentão, que pisava no sardento
ensaguentado em pleno gramado da praçinha colegial, olhou percebendo que a
diminuta plateia estava em êxtase e inflou-se vangloriado pela vaidade demente.
Os uivos deram lugar a certo silêncio repentino. Durante uns dez segundos foi
possível ouvir a respiração forte do sardento no chão, ele não chorava e, na
medida do possível, encarava bem ao seu algoz. Eram dois moleques feios como o
diabo. Um, sem a menor sombra de escrúpulo, deixava toda a má
personalidade à mostra; o outro só mostrava o nariz escorrendo sangue e as mãos
sujas de terra. Em meio ao longínquo burburinho da cidade grande que a tudo
consome e uma ou outra freada de automóvel mais próxima e um ou outro latido de
vira-lata presente que insistia por não respeitar a palavra do valentão gordo,
eu me preparei para sair à francesa. Mamãe certamente ralharia comigo assim que
desse por minha falta. Quis evitar meu castigo indo embora, mas alguém atingiu
que eu fugiria do espetáculo e me empurrou para o centro da batalha. Neste
movimento, involuntário de minha parte, a ira no valentão deu lugar à troça.
-
Quem é você, moleque? Fala, porra! Perdeu a língua?
Como
eu nada disse, ele me socou e me mandou sair dali. Mas foram dois ou três
murros na boca de meu estômago, fui ao chão igual o sardento desgraçado. Edu e
um outro, que não me lembro mais quem era, riram contentes; mas ao mesmo tempo
me puxaram a um canto como proteção depois do aviltamento. Naquele instante
todos os olhos aguçados da plateia se voltaram para mim. Observei que o garoto
sardento, do mesmo chão gramado, também me olhava sem dizer palavra.
Infelizmente a tristeza dele era a minha salvação. Meu coração apertou. Neste
momento eu já não achava tanta graça naquilo tudo. Comecei a rezar para que
dona Gorete tivesse dado atenção à própria percepção e aparecesse na pracinha
acabando com a agonia do menino que apanhava como gente grande. Não apareceu
inspetora, professora, diretora, nada, ninguém para apartar a briga; também não
houve choro, só risos e cochichos desdenhosos. Súbito, recomeçaram gritos
coordenados:
-
Bicha! Bicha! Bicha!
Os
insultos eram dirigidos ao ruivo esmurrado caído no chão. Mas o valentão gordo
e vaidoso queria falar, e falou:
-
O pai dele é uma bichinha! A mãe dele é puta! E ele é um viadinho!
Muito
curioso. O gordo disse estes impropérios ao sardento, deixou de pisoteá-lo e
foi embora, vitorioso, nos braços da jovem multidão. Eu quis ir até ele, mas
não fui. Nunca mais fui eu mesmo. Fiquei olhando de longe o humilhado
se levantar, não olhou para ninguém, a cabeça não era nem erguida nem baixa;
ele demonstrava coragem, mas também era covarde; e devagarzinho foi desaparecendo
por trás do muro bege da escola subindo à Santo Antônio.
Muito
tempo se passou. Dias antes já de minha formatura, eu o vi. Reconheci-o. Era
ele. A mesma cabeça que não se erguia muito, mas que não deixava os olhos a ver
só o chão. Fui até ele.
-
Opa! Meu nome é Pedro. Eu conheço você...
-
Eu sei. Você me conhece do dia da briga, né?
-
Sim... Caramba! Você se lembra então?
Ele
sorriu naturalmente.
-
Meu ligeiro colega de agonia... – disse alegremente pousando a mão direita
em meu ombro esquerdo. – Prazer, cara. Sou o Leonardo, mas pode me
chamar de Léo.
Achamos
graça. Ele não tinha mágoa nem ódio algum, de nada. Explicou-me que nem se
pudesse reagiria naquele dia.
-
Por quê?
-
Aquele moleque da briga... Que me bateu, é o Mário. Gordo maldito! Ele é meu
primo.
-
Nossa! Primo?... Mas só por isto ele podia te bater na frente de todo mundo
daquele jeito?
-
É complicado, e isto faz tanto tempo... É que naquele dia os pais dele estavam
se separando. Traição, endente? O pai dele estava se mudando, para Porto
Alegre...
-
Que surpreendente! Quer dizer, eu não estou te gozando; viu, rapaz. Mas... Pô! O
teu primo bateu em você só porque o pai dele abandonou a família para ir morar
com uma gaúcha?
-
Não, não. Ele me bateu porque zombei dele... Na verdade o pai dele não foi
morar com uma gaúcha, foi morar com um gaúcho.
Por Ricardo Novais