Super Juca Brasil e a cartomante

Imagem de arquivo.
Veio ter comigo a cartomante. Apresentou-me o cartão:

“Irmã Nininha, célebre em astrologia e médium em vidência nos búzios e cartas indianas. Com uma só consulta você ficará sabendo tudo sobre sua vida, mas tudo mesmo, seja qual for seu problema, particular, familiar, comercial ou amoroso. Faça voltar a pessoa amada através de simpatias, encantos amorosos. Vidência na água e trabalhos com a Deusa do Amor e da Fortuna. Venha ver para crer! Marque sua hora.”

- Minha senhora! – comecei por dizer a ela, espantado –, aqui é minha sala de ofício; sou...

- Sei quem o senhor é! Não pense que a distância de atribuições tem tanto poder ao ponto de reduzir uma admiração por qualquer mau jeito. O senhor é herói, salva toda a gente; eu também!

- Sim, sim, mas... Afinal, que deseja a senhora, minha ajuda?

- Nenhuma vida vale tanto nem tão pouco para ser renegada, eu vim para salvá-lo, meu caro Juca...

- Aceito a consideração, mas dispenso, com todo o respeito.

- A consideração já tem função de respeito, também de cancro: quando fere, fere; ferir é seu ofício...

Em tempo, a cartomante veio a serviço. Um meu cliente mal agradecido, ou má agradecida, não me foi dito, denunciou-me a ela, mas, declarando-se crente na filantropia, pagou a velhota para vir me encomendar a alma. Uma ameaça velada, naturalmente. Como imagina o leitor, não me abati. Sou herói bastante viril e corajoso; às vezes mais viril do que inteligente, é verdade. De modo que me rendi à centelha de emoção do espírito refletida diante do espelho.

- Irmã Nininha, que faço?

- Não se sabe o dia futuro, meu filho; no entanto, provavelmente, seu algoz não tenha hábitos, digamos, muito racionais... É pouco atilado nas ideias pragmáticas e usa mais o coração, como sabe... E isto é bom. Muito bom, que assim seja! Jogo agora os búzios, embaralho as cartas e vejo: que é possível desfazer algum olhar oblíquo aliado a sutil nariz torcido; vejo que o senhor está iluminado, e é necessário porque tu és a salvaguarda de toda nossa gente.

A velhota com ares filosóficos jogou as pedras místicas na peneira gasta por entre os dedos longos enfeitados por anéis escuros e pontudas unhas encarnadas, sorteou cartas alegóricas numa estrelada toalha azul-clara puída, sorriu mostrando alguns dentes amarelados, ora pelo cigarro vagabundo que formava ralas nuvens aborrecíveis ora pelo ouro carcomido, e concentrou-se entrando em si. Nada ela dizia. Tinha o olhar da sabedoria religiosa, apesar se soubesse esplêndida profana. Observei-a nestes e noutros gestos numa mistura de tédio e admiração. A vida admira mesmo os cretinos, pensei, por isto a morte vence com tanta facilidade; e, embora o destino seja terminal idêntico a todos, tanto o vulto em meu encalço, a própria cartomante, ainda eu e toda a gente lançamos a chama irônica da esperança a salvar nossos próprios cadáveres carregados sempre às costas.

Soube que quem desejava a minha morte acabou por morrer primeiro, foi mediúnica sentença dada. O que eu não soube foi quem era o meu quase-assassino, ou quase-assassina, sabe-se lá, então, para mim, morreu o infeliz que nem mesmo nasceu. Incrível! Como a morte vem antes da vida? Não é de nossa conta. De todo modo, Irmã Nininha salvou minha vida, vida de super-herói do povo brasileiro. Fato que me custou quinhentos reais, do cofre, à hora; embora esta conta seja de meu povo, mas isto, acórdão de tão pouca rixa, já é outra história. A que propus contar termina aqui, neste ponto final.

Por Ricardo Novais 
Texto publicado originalmente n'O Bule.
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