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"Adão e Eva no Paraíso" - Museu do Prado, Madrid. |
Pouco
mais de meio-dia. Um esdrúxulo silêncio interno, na verdade todo carregado de
barulho externo, mistura-se ao burburinho de toda gente que ia aos preparativos
do almoço. A porta se abre. Não olho. Escuto os passos. Súbito, o coração
descompassa. Os cabelos balançam charmosos e sedutores. O ar esbarra em algum lugar
entre o que vejo e o que imagino que vejo. Sempre extraordinário vê-la,
atraente, jogando o olhar de verve reflexão, mais minha do que tudo.
Os
olhos de uma mulher mudam de direção, como sabe o leitor. Tudo pode lhe chamar
a atenção; uma cadeira, uma rajada de vento, uma folha jogada no tapete. Eu
fico a observar os movimentos dela; movimentos de movimentos. Em seguida,
escuto outros passos, outra mulher, outro barulho; vestido vermelho,
esvoaçante, som de salto agudo cavoucando o chão, duro. Da mesma forma, um
rosto feminino que desvia o seu olhar...
A
leitora que me lê neste hiato de tempo tem razão, acertou em sua análise, minha
querida; o olhar é uma gentileza entre um homem e uma mulher. Se a visão de uma
Eva encontrar os seus olhos e ela desviar o interesse para outra coisa é porque
não há tentação. Mas se uma mulher olhar dentro de teus pensamentos e baixar a
cabeça, nem que seja momentaneamente, a ver apenas o chão, encaixou-se algum
olhar elétrico e ardente.
Assim
sendo, meu amigo, deste ponto em diante há um desafio: a conquista de um
sorriso, o sorriso da mulher. E cada ato deve ser preciso, exato, calculado.
Vale um gesto ousado, um desejo de ação maliciosa; e do nada se faz o
imponderável.
- Olá!
– entre um canto de boca.
- Olá!
– entre uma provocação. – Linda tarde para um café, não?
Que
me perdoe a querida leitora de ideias castiças, mas não há nada de imoral nem
promíscuo em desejar as mulheres, todas elas. Não me tome por cafajeste, amiga
leitora. Mas desejo é amor, logo, a constância de aparências estraga o amor.
Ninguém deseja uma vida de mesmices. O amor nunca é fugaz ou inútil; em essência, o amor é um sentimento contraditório. A começar por um olhar desde os pés femininos, os passos
duros e agudos; os joelhos sensuais; a visão subindo em câmera lenta até os
olhos, um festim pulsando sangue; o rosto emoldurado pelos cabelos voluptuosos
e pela graça naturalmente sexual. É como o prazer que causa o fogo. Um desejo
mórbido e incontrolável de incêndio repentino da alma, que excita a vida.
Piromania de olhares.
Do
resto, não me importa. Deixo toda a felicidade exterior de lado, apego-me apenas às emoções
vívidas e atiladas; numa cobiça profunda, e transtornada, de ser o homem que preciso
ser. Chego a minha casa tarde da noite. Imediatamente, percebo que tudo que tenho
é o olhar, e os olhares.
Por Ricardo Novais
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