Maria Cecília

Ilustração do site: Ovelhas Voadoras.

A dona leitora entende uma discussão entre dois namorados? Há de se entender que o amor são pequenos gestos, e não os grandes como parece insistir o coração acelerado.

Conheci Maria Cecília numa noite de farra, apresentado por amigos em comum. O que deveria durar uma noite, teve a cama compartilhada como um símbolo de acolhimento; como um passarinho que sempre voa de volta para a sua casinha.

Na cozinha, partilhávamos sorrisos, piadas, ideias, passeios, viagens, queijo...

- Corte o queijo para fazermos o macarrão, Augusto? – pedia-a me ela com um olhar oblíquo, às vezes longe, porém, tão agasalhador e conexo.

Eu ficava atrás dela, ela apontava para as prateleiras.

- Pegue aquele pirex, amor, por favor.

A distração de uma rede social da internet, joguinho de celular, futebol na tevê ou de uma visão de entardecer chuvoso não nos irritava, ao contrário, fazíamos disso uma gostosa competição.

- Duvido ficar sem o celular, duvido! – eu desafiava. Ela ria, e devolvia a provocação.

- Eu?! Eu ou você?

- Bom... Nós dois perdemos.

-Te amo, Augusto!

Lá do box embaçado do banheiro ela me chamava. Aclamação química! O vapor da água quente se misturando à fragrância do sabonete comum, ao gozo dos perfumes dela e à respiração amena. Minha Maria Cecília. Minha Cecília. Minha Ceci, de costas. Respiração ficando devagarzinho ofegante. A água temperada caindo sobre nós. Eu mais juntinho a ela, beijando-lhe a nuca, alva, inquieta; tudo num cuidado sexual... Não imagina, leitor, como aquela mulher era provocante, com grandes olhos castanhos maliciosos pedindo para satisfazê-la, querendo me engolir, e estes gestos trançados a sinais delicados e elegantes. Cecília era quase natural. Naquele momento encontrei minha companheira eterna; naquele momento encontrei meu Nirvana, o ápice que me libertou.

- Vamos nos deitar, querido!

Era noite. Noites. Muitas e muitas noites. Órgãos ora expostos ora entrecobertos, à meia-luz, sob a clarividência de um relacionamento com o tempero adequado, feito com a medida certa. Dois corpos fundidos quimicamente: molécula, micha, mucosa, placenta, pus... Tudo nutrindo nossos corpos, nossos corpos nus. Era um cruzar de pernas e movimentos atingindo labirintos entre névoas despidas.

- Eu quero...! Vem...! Eu quero...! Eu quero gozar! – ela gritava em toque de ordem irresistível, insaciável. – Vem, amor! .. ..., ....! Augusto! Augusto! ...! ...! ...! Vai...! Eu quero...!

- .. ...? Ah, ......! ........! Ah, Ceci! Ah...

- ... ....! ......! ..., ....! ....! ... ....! ..........! ....! ... ....! .. ....!

- .. ...!

Penetração carnal, suja, violenta; e ao mesmo tempo terna, afetuosa, apaixonante! Ela jogada de quatro no chão de carpete marrom-claro, espremida do espelho manchado de reflexos extravagantes; eu com a musculatura e ideias que poderiam muito bem ter durado a eternidade, mas que foi breve tremor de artérias túrgidas. Preservativos que não usamos. E nossos corpos entrelaçados, num bater de joelhos deleitoso, em sussurros que ora viravam urros de prazer ora eram simplesmente gritos de um amor fugaz, quase estéril. Não couberam ali fingimentos de preliminares, gestos armados e arranjos sexuais – fomos o próprio orgasmo.

- Maria Cecília!

De repente, em meio aos filmes eróticos que insistia em vir às retinas, às músicas de cantora de cabaré francesa que passeavam pela orla cerebral e à sombra esparramada de dois amantes de frente para um lago, deixamos uma taça de vinho pela metade. Foi uma discussão de namorados que surgiu sorrateira e decisiva. Uma discussão que nem menciono aqui o teor porque é de tema tão grande e pomposo que não cabe à compreensão de um amor tão tolo, pueril e acanhado de diagramas ou arquiteturas, pois que este amor tinha fundamento nos pequenos gestos.

Mas é aí que está, querida leitora, acredite-me; não conto aqui uma aventura vil de autor depravado. Oh, não, senhorita leitora! Quero apenas compreender, minha amiga que me lê, ousando até recordar o sermão da montanha que diz que são “bem-aventurados os que possuem, porque eles serão consolados”: o que faz dois namorados abandonarem os pequenos gestos de amor e cuidado pelas grandes e pomposas discussões deste faustoso mundo?

E como o conto já vai longe, com muitas linhas que podem cansar as vistas menos treinadas, só digo que foi isto, nada mais.

Por Ricardo Novais
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