I - HISTÓRIA DO AMANHECER
Os primeiros raios de sol
vieram a perturbar os meus olhos. Era manhã, era novo dia. Não me mexi. O sono
fora tão calmo e tranquilo que quis prolongá-lo. Mas o relógio-despertador do telefone
celular iniciou seu ofício estridente. Estava na hora de levantar-se da cama à vida.
- Que isto? Que está havendo?
Eu estava acordado, bem
acordado. Refletia, eu via o teto e todo o lado esquerdo do quarto, as paredes
de um branco desbotado já tão minhas reconhecidas; e queria me mexer, mas não
conseguia. Tudo estava confuso, nada se fazia a entender. O que me aconteceu?
Eu não sabia. Fiz um esforço sobre-humano para mexer a perna esquerda, nada.
Não mexi um músculo, um tecido. Em compensação, meu cérebro fervilhava. Pensei
estar já chorando, porém percebi que não escorria lágrima. Pensei estar morto,
mas eu estava matutando, de modo a estar vivo. Não era sonho, eu escutava as
pessoas fora do quarto; o andar arrastado do senhor Gilberto lá fora, a dona da
pensão a avisar do café da manhã, as moças de hábitos noturnos chegando para o
descanso e batendo a porta de seus quartos. Não era possível, eu não estava
morto.
Calculo, pela intermitência do
despertador, que fiquei bem umas duas horas nesta mesma situação em cima
daquela cama; quando, de repente, bateram à porta.
- Senhor Arthur, está dormindo?
Não vai tomar café hoje, não?
- Deixe-o, deve ter chegado
tarde de alguma festa e ainda dorme... – escutei a voz de Seo Gilberto
ponderando à dona Márcia e passos arrastados afastando-se.
- Não! Não! Voltem! Estou
acordado, voltem! Não consigo me mexer... Ajude aqui... Socorro! Socorro!
Socorro!...
Foram gritos e gritos e mais
gritos, todos sem resposta. Gritos silenciosos. Ninguém me ouvia. Comecei a
pensar que aquilo era um pesadelo, e que se eu tornasse a dormir quando
acordasse tudo voltaria ao normal. Tentei, tentei e nada de adormecer
novamente. Simplesmente não havia sono, meus olhos não fechavam, ao contrário, estavam
irritados ou isto também era só imaginação porque não doíam e nem a poeira, que
eu percebia cair neles, impedia a visão à meia luz.
Iniciei uma homilia mental.
Rezei a todos os santos, recordei até o terço que vovó rezava em São Paulo e
tentei cantá-lo. Mas a aflição e outras recordações se embaralhavam a tudo.
Novamente ouvi a voz do velho Gilberto e de dona Márcia, um queria que se respeitasse
o meu repouso a outra conjecturou que algo errado acontecia. Venceu o primeiro,
e foram embora.
Espera aí, pensei. Hoje é
domingo, claro! Ontem fui à casa noturna e bebi muito, mas bebidas dão apenas
ressaca... Se bem que... Porcaria! Acho que andei fumando daquele tipo de
salvia outra vez... Tenho que parar com estas baladas... Mas... Espera aí.
Porra! Claro! Colocaram algo no meu copo, sim! Estavam falando daquele...
Curare, curare, curare... É! É isto! Sim! Hum... Fui infectado por alguma
protocurina de curare... Mas como? Lembro-me de que falavam que era uma droga relaxante,
que deveria ser tomada com moderação. Relatavam lá que a essência da erva vinha
da selva amazônica; em outros tempos, acho que os índios a usavam nas pontas de
suas fechas para que o veneno paralisasse o inimigo e defendessem suas
tribos... É isto! Sim! Sim! Sim! Filho da... Alguém me sacaneou! Não estou
morto, estou paralisado pelo curare, daqui a pouco vão entrar aqui e me levarão
ao hospital. Devo ter batimentos cardíacos, vão me reanimar... Socorro!
Ajude-me, bom Deus!
Ajude-me! Ajude-me!
Ajude-me!... Áááááááhhhhhhh!
O que isto? Recomponha-se,
Arthur! Ora, ficar deste jeito não irá me ajudar me nada, tenho que manter a
calma... e pensar... Deixa-me ver, deixa-me ver... Hum... Quando eu era criança
e adolescente acontecia algo análogo. Às vezes, quase sempre naquele momento
que ainda não é manhã e também já não é madrugada, na aurora, via-me fora do corpo.
Parecia que eu já tinha levantado e saído da cama, pedido a benção a meus pais,
tomado café e, de repente, eu percebia que ainda estava na cama, dormindo. Mas
também não era sonho, então nitidamente eu percebia que não conseguia me mexer
e fazia um grande esforço, um empenho concentrado nas pernas, para mexê-las, e,
finalmente, conseguia me mover. Recordo revirar-me no colchão a fim de mudar de
posição; do contrário, a agonia da paralisação consciente sobrevinha. Mas agora
foi diferente. Toda a força, todo o empenho, toda a energia não conseguem me
devolver da paralisação. Por certo, era o efeito da maldita droga. Era quase um
milagre que neste estado de cataclismo físico e psíquico, em que eu me
encontrava, não tenha me acometido nenhuma fatal overdose; bem, por enquanto
não...
Passaram-se os minutos, eu
fiquei feliz por saber estar vivo e angustiado por não conseguir me mover.
Embora deitado, já estava exausto. Detinha minha atenção apenas o zumbido dos
carros lá fora, de mães chamando os filhos, ecos de latidos de cachorros
longínquos e o bondinho de Santa Tereza que soava de passagem. O senhor leitor
que lê este conto não imagina o terror que se passava em minha cabeça. Eu respirava,
mas não sentia o alento às narinas. Enxergava, mas não cerrava nem batia as
pálpebras. Não mexia a boca, o queixo, as mãos, os pés, nada. Qualquer um que
chegasse ali pensaria imediatamente que se tratava de cadáver fresco. O pior é
que minha família não estava ali comigo. Não sou desta cidade, vim a trabalho.
Meu pai é aposentado; às vezes ele vem e fica um pouco, por alguns dias,
ajuda-me a acordar pelas manhãs, mas logo tem de voltar à São Paulo. Minha mãe
e irmãos moram também lá naquela capital bandeirante, e não tenho namorada.
Meus colegas de trabalho não podem me ajudar, hoje é domingo, eles estão de
folga e não me visitam. Há três meses aluguei um quarto numa pousada decente da
Costa Bastos no bairro de Santa Tereza, fica perto do escritório, na
Cinelândia. A comida é boa, as pessoas são conservadoras e ordeiras, embora
tenham que fazer vista-grossa aos viciados em maconha e às prostitutas que
moram na casa. Afinal, eles pagam direitinho. Há também alguns funcionários
públicos e empregados médios de empresas privadas, que, assim como eu,
dispensam o conforto refinado para economizar algum dinheiro em cidade alheia.
Aventurei-me tanto para mexer
os pés e braços que meus pensamentos iniciaram fadiga. Ironicamente, comecei a
pensar que não são nossos músculos e outros membros que cansam; o enfastiar é
da ideia. Pouco a pouco fui dispersando, os zumbidos não prendiam mais tanta a
minha atenção, tudo foi ficando escuro, inconsciente, embora meus olhos
permanecessem abertos, e veio uma paz muito serena.
II - AUTÓPSIA
Só foi possível ouvir o
estrondo. A porta veio a baixo. O pessoal do resgate entrou primeiro, depois dona
Márcia e o senhor Gilberto.
- Menino, menino! – gritava a
velha.
- Está morto... – afirmou um
homem com voz entrecortada encostando os dedos à minha garganta.
- Não, não estou! – tentei
gritar. Eu mesmo percebia que nenhuma voz saía de minha boca. A paralisação
continuava, pensei agoniado.
O enfermeiro tentou fechar meus
olhos, mas não conseguiu e desistiu logo. Alguns da pensão riam por descrença,
outros estavam em choque.
- Foi droga – disse um.
- É ataque do coração –
conjecturou outro.
Uma mocinha que eu paquerava
chorou, eu fiquei feliz com isto. O velho Gilberto, que era português antigo da
casa velha e viúvo há tempos, prontificou-se a acompanhar o corpo ao IML.
Espantei-me com a necessidade e aterrorizei-me com a sigla: IML. Insistiram que
me levassem ao hospital; assim foi. Na Santa Casa deram a hora da morte às
3h45min de domingo. A causa mortis era ofício aos legistas desvendarem. Fizeram
os procedimentos de encaixotar cadáver, chamaram o rabecão e três horas depois
eu estava de volta ao bairro, num corredor claro, sob uma maca, coberto por
lençol e dado como morto na Mem de Sá.
Descobriu-se meu corpo, o alvo
lençol foi ao chão cinza. Veio um primeiro legista. Ele olhou-me de lado a
lado, calçou luvas e deu-me asco quando percebi a mão daquele homem passeando
pelo meu corpo nu. Chegou uma mulher, não era velha nem bonita. Vestia avental branco.
Parecia estagiária.
- Ele é todo seu, mocinha! –
disse o legista à garota que demonstrava suar frio.
O homem saiu da sala. Ela
tentou fechar meus olhos, mas estes não fechavam. Eu tentei falar a ela, ela
não ouvia. Curiosamente, atingi os seios fartos dela, instantaneamente meu
órgão genial deu sinal. Isto foi o que achei, porque a estagiária nada de
estranho notou. Para ela, eu não passava de um presunto moço.
A mulher não me cortou de logo,
logo. Pegou do bisturi e parecia medir meu dorso. Em dado momento, fixou seus
grandes olhos verdes em meu rosto. Olhou, olhou, e desviou para a boca.
- Pobre rapaz, tão jovem... –
disse isto baixo consigo e depois falou alto a mim: – Se ver meu noivo por lá,
mande lembranças a ele...
A estagiária preparava-se para
iniciar a minha retaliação, o morto que estava vivo, quando, de súbito, bradou
uma voz:
- Espere! Não, ainda...
- Isto, doutor! Isto! Não
deixem que me matem... Estou vivo! Estou vivo! Não quero morrer... – gritei o
mais alto que ninguém pode ouvir.
- Que foi?
- Um tiozinho que acompanha
este cadáver pediu para vê-lo... É bom que o veja inteiro... Rá, rá, rá, rá,
rá, rá, rá rá, rá rá, rá...
- Mas, doutor! Isto não é
contra os procedimentos?
- Vá se acostumando, mocinha...
O velho Gilberto entrou à sala.
Ele chorava.
- Filho, que lástima! E tão
longe de casa... Teus pais já sabem, eles vêm logo, filho. Sinto muito, sinto
muito – o homem soluçava. – A morte é trágica, e injusta... Leva os jovens e
deixa os velhos. Por que não me levaste invés de meu filho, Deus? Preciso tanto
ver minha Marieta...
Eu estava comovido. Gilberto
era um senhor educado, sempre brincava comigo e chegamos mesmo a ir juntos ao
Maracanã e São Januário. Estranhou-me, no entanto, chamar-me assim e chorar
tanto.
Como o deixaram entrar? Ele nem
parente é; ou será que é?
- Bem, senhor – retornou o
legista –, infelizmente o senhor tem que ir embora, tem que sair daqui, agora!
Compreende, senhor?
- Mas eu pago mais, só mais um
pouco... É meu filho!
Filho? Não leitor; não farei
mistério algum. O velho portuga não era meu pai, ele passou a considerar-me
como tal depois que seu filho legítimo foi assassinado, junto da esposa, dona
Marieta, num ordinário assalto na zona sul da cidade. Isto já deve ter uns bons
dez anos, mas o pobre homem nunca se recuperou. Ele vive a repetir a tragédia a
todos que encontra pela frente e, vez por outra, confunde este ou aquele rapaz clamando
pelo filho.
Passou quinze minutos de
lamento sincero e confuso e o legista avisou que não era mais passível de
suborno.
- Não! Não! Por favor, ele dará
mais dinheiro a vocês! Dê mais a eles, Seo Gilberto. Dê dinheiro a eles! Vamos,
vamos... Por favor! Não, volte, volte, volte...
Eu chorei, copiosamente. A dona
leitora está certa, nenhuma lágrima foi visível; ficaram todas elas dentro do
coração, presas, lúgubres, à espera do fim. E o fim chegou logo. Veio a mesma
garota de seios fartos, o mesmo bisturi afiado em mão trêmula, as palavras
iguais, os gritos pavorosos sufocados e...
A dor que senti foi pior que a
dor do parto. Verdade que nunca pari, mas a leitora que já é mãe sabe do que
falo. Aquele instrumento pontiagudo cortou-me de lado a lado, as vísceras
saltaram de pronto, as entranhas todas à mostra, o ar fétido, tétrico,
nauseabundo; eu senti tudo, corte por corte, investigação lenta minuciosa e
imprecisa por tudo que fui nesta vida. A moça não reparou que meu coração ainda
palpitava por sobrevivência, fraco, muito fraco, mas dava clamorosos sinais
vitais. Ela os ignorou por completo. Meu desespero era latente. Não aguentei, de
repente tudo se movimentava sem nexo e os objetos giravam perseguindo-me, eu
não vi mais nada; a não ser uma luz clarividente e acolhedora. Fui à luz.
III - O CORTEJO NOTURNO
Quando dei por mim, estava
bem-vestido e dentro de um esquife. Eu observava as flores fúnebres murchando
minuto após minuto e já pensava na minha nova e confortável morada sete palmos
abaixo da terra. Concluí disto que a morte é um sono eterno e sem sonhos. Minha
mãe chorava ininterruptamente ao lado do caixão, era um soluço melancólico e
curto; meu pai tomava um café em copo de plástico. O clima era sorumbático. No
atestado de óbito vinha escrito: “Morreu de ataque paralisante do miocárdio”.
Ora, essa é boa. O miocárdio foi o único órgão que se manteve firme, vivo até o
fim. Pobre miocárdio! Mas, se bem que... Não, não foi o único que se manteve
vivo, pois é certo que não examinaram o meu cérebro – embora árdua seja a tarefa
de medir os pensamentos...
Ouvi que seria translado para
São Paulo. No fim, tudo é um campo de girassóis... Nunca pensei que faria tal
viagem, de mais de 420 quilômetros, desta maneira; e melhor, sem pagar
absolutamente nada pela passagem. Isto é quase boa promoção de agência de
turismo; de fato, uma pechincha! O trem seria o cortejo, a carreata funesta e enigmática.
Mais terrível nisso tudo,
leitor, é que mal tinha morrido direito e já recebi companhia indesejável. Uns
vermezinhos vieram ter comigo:
- Olá, amigo! Sou o
escaravelho, mas pode me chamar de Cará. Muito prazer!
- É? O prazer é teu, não vê que
estou morto?
- Sinto muito, acontece... Bem,
amigo; mas viemos vê-lo porque vamos nos alimentar de seu corpo; questão de
sobrevivência; você entende, né?... Ah, mas não se preocupe! Geralmente
funciona assim: a comida nada sente; apenas arrancamos um naco do presunto,
comemos e vamos embora. Noutro dia voltamos, outros não podem vir, apenas eu e
meus companheiros decompositores, somos os donos de seu corpo; eles que
procurem outro defunto para saciar a vida, ou morte! Quando der por conta, já
nada mais existirá de ti. Entendeu tudinho?
- Entendi. Mas, por favor, não
dá para esperar um pouco; quer dizer, ao menos até que eu esteja enterrado...
Não quero ter aspecto ruim no velório; compreendem?
- Oh, sim, claro! Por enquanto
só viemos mesmo lhe dar as boas-vindas. Já te disse para não se preocupar... –
De repente o escaravelho fechou a horrenda face e raiou com os amigos:
- Ei, senhor fungo, dona bactéria;
agora não! Depois vocês comem; que gula!
- Mas Cará... É só uma
lambidinha. Poxa! Estou morrendo de fome...
- Não! E Basta! Não sabem o que
é basta?
Basta foi tudo que eu soube da
cadeia alimentar. Aqueles vermes morriam de fome e eu já estava morto – finado
e encaixotado. Curioso, mesmo sem poder me mexer eu percebia que aquele caixão
era muito apertado. Meu pai deve ter economizado em minha última morada... Um morto
deveria ser enterrado em local grande e arejado, algo parecido com a tumba de
Jesus Cristo. Por que não dar espaço à morte?
I V - CIDADE DE CAMPANELLA
Eu devo ter adormecido
novamente. Cochilo mortal, literalmente mortal. A dona leitora que acredite: os
mortos também dormem. Se eu dormi e não estava vivo, então sou a prova viva, ou
morta, de que existe algo além-túmulo. Não te assustes, queridos leitores;
creio até que apreciariam fazer tal viagem. Quem sabe um dia; né mesmo, meu
amigo e minha amiga? Uma extraordinária viagem fascinante! Entretanto, nem tudo
é turismo. A morte tem lá também suas aflições; e o fato é que quando recobrei
a consciência, abri os olhos que tinham fechado a custo no IML e assustei-me
muito. Desenlacei os dedos que aquela maldita moça dos seios fartos tinha
cruzado, encostei a mão à lateral acolchoada do caixão, mexi os pés em sapato
novo – para que sapatos novos em morto eterno? –, ainda um pouco tonto, eu
sentei no ataúde. Passei a mão direita do lado esquerdo do peito, doía muito –
sim, senhor, além de dormir, os mortos também sentem dor. Eu tinha um corte
feio no peito...
Maldito bisturi!
Um homem pouco calvo, com
cigarro à boca e copo de uísque à mão direita disse-me:
- A dor passa. Isto tudo logo
passa. Depois que o trem cruzar a fronteira dos dois Estados você se sentirá
melhor.
- Qual Estado? Quem é você? Eu
já o vi em algum lugar... Nossa!
É...
- Vinicius de Moraes, às
ordens!
- Vinicius de... Porra! Mas
você está morto!
Ele riu.
- Claro! Eu estou morto – eu
concluí.
- Não se precipite, meu jovem.
- Para onde estamos indo? Para
São Paulo?
- Não, não vamos a São Paulo.
Acalme-se, você logo saberá.
- Meus pais, eles estão no
trem?
- Não se preocupe mais com
eles; ficarão bem!
O panorama era bonito, as
montanhas, altas e baixas, todas cobertas de um esverdeado um pouco dourado em
meio à escuridão da noite. A lua cheia jogava sua luz bucólica e gentil em
tudo. O céu, entre azul e cinza, tinha nuvens altas e rarefeitas; ou eram quase
nuvens, lembravam mais vapor de café recente. Passou um bom tempo, daí perguntei:
- Este é aquele trem noturno
que cruza por cima do rio Doce?
- Ora, não! É trem noturno, mas
não é doce... Se fosse viria eu te buscar, rapaz? Não! Viria logo o próprio
Alphonsus ou a moça Ismália. Né mesmo? Né mesmo? – caçoou de mim com um risinho
sem vergonha. Poetinha desgraçado! ...
- Não é trem-doce, não é
trem-bala, que diabo de trem é este, afinal, hein?
- Trem noturno.
- Mas...
- Não tem mais nada. É trem
noturno. Trem noturno.
Nada mais eu disse. A viagem do
trem triturava engrenagens e pensamentos. Fiquei olhando para o Vinicius, extasiado
e pensativo; ele olhava a paisagem pela janela da locomotiva, fumava e bebia
longas doses de uísque. Também bebi uma ou duas doses; bebi mais para me acalmar,
não me ousaria pretender acompanhá-lo. Eu tinha muito medo de tudo, e tudo era
o desconhecido; percebi que o pavor estampou-se à minha cara. Mas, ao mesmo
tempo, senti-me admirável, um orgulho avaro, por merecer grande poeta de
acompanhante em minha hora derradeira. Porém, foi aí que me preocupei. Aquele
homem havia vivido intensamente... Ai, meu Deus! Teria sido o poeta agraciado
com o paraíso por seu estilo de encarar as agruras da vida com leveza ou castigado
com o inferno pelos prazerosos vícios terrenos? Ah! Àquela altura, pouca coisa
importava. Depois de ficar paralisado, ser retalhado por uma moça depressiva e
virar comida de verme, nada poderia ser pior – nem o inferno.
Mas não era o inferno. Da
janela do vagão consegui ler: “Amigo viajante, seja bem-vindo à Campanella”.
Passou algum tempo e lia-se outra placa: “Perímetro urbano de Campanella”. O
trem parou e Vinicius se levantou:
- Vamos!
- Onde?
- Vamos saltar; ora! Vamos! –
ele reiterou a ordem.
Ao descer do trem, o poeta
declarou:
- Bem-vindo à cidade de Campanella,
lugar das paixões.
V - DO OUTRO LADO DO SISTEMA
SOLAR
- O que vim fazer aqui? Estou
morto, Vinicius?
- Sei lá, sei lá... Vamos ali
ao bar tomar uma bebidinha.
A cidade era pequena, mas
linda. Havia árvores por todos os lados, os carros eram todos das décadas de
1950 ou 1960. Porém as casas pareciam muito mais antigas, talvez da época do
renascimento, especialmente aquelas que ainda hoje se veem na cidade de
Florença. As pessoas se vestiam diversas umas das outras. Vinicius de Moraes, por
exemplo, trajava black-tie; mas passou uma mulher de vestido vermelho com
aspecto horrendo, parecia carregar o próprio cadáver invisível às costas; um
rapaz, a cara do cantor Cazuza, usava somente jeans e camiseta e fumava alguma
coisa no meio da rua. Outros se apresentavam de terno e gravata, alguns sem
gravata e muitos de blusa azul-marinho. O tempo não era frio nem calor;
podia-se vestir um sobretudo de lã ou uma regata de flanela.
Ao entrarmos no boteco, veio um
homem, entregou-me um bilhete e fez sinal que eu nada dissesse a outra pessoa,
a não ser ele. No papel estava escrito: “Vá embora enquanto pode”. Deve
imaginar, leitor, a nova confusão que me acometeu. Esperei ele ir ao banheiro e
fui atrás.
- Que está havendo aqui?
- Não sei.
- Quanto tempo está aqui?
- Aqui é difícil saber, uns
cinco ou dez anos, talvez... Na verdade eu não sei dizer...
- Meu Deus! Que loucura! –
olhei o homem e sorri a ele: - Eu devo conhecer o senhor também, não é mesmo?
- Meu jovem, aqui todos se
conhecem. Só estão aqui as pessoas que, de algum modo, conhecem você, que
tiveram contado com você.
Está entendendo? Campanella é
terra de ninguém, e... Também de todos.
Antes de sair, ele virou o
rosto dizendo:
- Tenha por certo que a tua
família está bem. Mas quem aqui está deve ter medo... Você, eu; entende? Eu não
sei... Não sei...
Saí do bar e andei pela
calçada, impecavelmente limpa. De súbito, a cidade, que a pouco era bela e
pequena, mudou para o aspecto de uma megalópole enorme, cinza e barulhenta.
Esbarrei numa mulher.
- Desculpe, moça!
- Tudo bem... Não foi nada.
- Aqui é Campanella?
- Sim.
- Mas...
- Não estranhe, por aqui é
sempre assim. O tempo e as coisas mudam, de repente... – ela disse e sumiu;
pareceu ser uma prima minha morta ainda na primeira juventude... Eu tive
impressão, mas também de nada eu sabia.
Vi tanta gente. Parentes,
amigos, atropelados, sumidos, alguns que eu não tinha ideia de onde estavam e
outros que eu imaginava estarem em outro lugar. Não! Todos estavam em
Campanella.
Eu tinha de ir embora daquele
lugar; lembrei-me do homem que parecia tão íntimo de mim, conjecturando perigos
em banheiro de boteco, e que eu não arranhei jeito de recordar quem ele era.
Nisto aproximou-se outro senhor, este não direi quem é.
- Como vai? – perguntou-me com
gentileza.
- Bença... – reverenciei-o
- Deus te abençoe.
- Está tudo bem?
- Sim, graças a Deus! Mas,
você... Você andou pisando na bola... Mas estarei sempre contigo. Vamos
resolver tudo. Reze um pouco, confie em Deus. Tudo vai dar certo! Adeus. Fique
com Deus!
- Espere, preciso dizer o que
sinto... Por favor! ...
Ele foi embora. As lágrimas
agora corriam a rodo pela minha cara que outrora sempre fora dissimulada, e eu
podia senti-las todas. Os cortes da autópsia não mais doíam, sequer existiam.
Percebi que nem marcas ou cicatrizes haviam ficado, era como se nada tivesse me
cortado de lado a lado. Foi inevitável um sorriso debochado.
Roubei um carro. Um Opala,
creio que o ano dele era 1968 ou 1967. O motor robusto fazia barulho, todos na
rua me olhavam. Fiquei rodando por cerca de 40 minutos, o rádio FM só tocava
rock n‟ roll
no último volume ou música renascentista muito
íntima. De repente, o rádio mudou para o AM; só se ouvia na estação a narração
de jogos de futebol com jogadores mortos: Heleno de Freitas, Garrincha,
Feitiço, Puskas, Pelé – este eu não tenho certeza se morreu, é eterno –,
Maradona – este eu não tenho certeza se viveu –; outros compunham a escalação
com o saudoso Tonhão Pingaiada, o baixinho Gino, o asqueroso Pezão, enfim, muitos
craques memoráveis disputavam uma peleja histórica em algum estádio monumental
daquela cidade de Campanella.
O carro ia a toda velocidade.
As estradas eram largas, o asfalto bom, parecia rodovia, mas havia muitas casas
às margens que indicam perímetro urbano. Campanella era grande por todos os
lados, parecia não ter fim.
Peguei um desvio à direita.
Ninguém me seguia, mas comecei a achar que se continuasse naquela rodovia
ficaria rodando em círculos, embora fosse pista reta. É que de cinco em cinco
quilômetros, contados pelo mostrador analógico do automóvel, a paisagem mudava
para a anterior, os mesmos guard-rails, o mesmo mato, as mesmas casas, os mesmos
edifícios, apenas os transeuntes e os outros carros eram diferentes – eu
conhecia todos. Neste atalho a estrada era ruim, sombria, mão única, as grandes
árvores escondiam a lua que já era pálida.
Comecei a perceber que alguém
corria dentro da mata, pisei no pedal do acelerador, mas o automóvel não
aumentava mais a velocidade. O vulto cruzou a pista e... Eu o atropelei.
Desci do carro e fui até o
atropelado. Era Garrincha, o genial Mané Garrincha. Ele se levantou, devagar,
depois disse:
- Estou bem, amigo.
Entretanto, uma voz estranha
bradou:
- Não podia ter feito isto,
caro rapaz.
Acho que desmaiei, porque não
entendia mais nada.
- Onde estou? – interroguei um
pouco zonzo.
O vulto que batia a poeira da
roupa de Mané respondeu-me:
- Você está no lado homólogo da
Terra.
Imediatamente chegou a polícia.
Não me pergunte, leitor; eu não sei como os policiais chegaram tão rápido.
V I - JULGAMENTO INESTIMÁVEL
A chefatura policial veio num
tílbure do século XIX. Inacreditável! Quantos tipos de veículos existem neste
lugar? Era o mesmo lugar? Sim, era; mas nitidamente a época havia mudado
novamente. Atrás na patrulha, desceu o delegado. Em seguida, em outro veículo
do mesmo gênero do primeiro, surgiu o prefeito de Campanella. Incrível! Era Machado
de Assis.
- Não acredito!
- Nem eu digo que acredito –
debochou o bruxo.
- São olhos refletidos – eu
disse.
- Seguramente – acudiu ele –;
entretanto, pode ser que tu estejas errado. A verdade é que uma coisa não
impede a outra, e a reflexão casa-se muito bem com a curiosidade natural. Parece
curioso, isso parece, mas...
- Vamos levá-lo! – ordenou
áspero e subitamente o delegado.
O delegado era Olavo Bilac.
Tinham dois soldados, um era Renato Russo – coitado do Renato, sempre fora do
tempo... –, o outro, ou a outra, era a senhorita Bidu Saião. Eles pareciam
indolentes, mas agiam naturalmente. Não deveria dizer, leitora, mas digo,
porque é verdade; apaixonei-me por aquela moça, irresistivelmente... Mulher
deveras fascinante!
Levaram-me à delegacia, poucos
minutos depois já estava em tribunal. “Que rapidez”, recordo que até pensei
isto ao me lembrar da morosidade em cartórios de São Paulo e do Rio de Janeiro
do meu tempo; que também é teu tempo, leitor.
O juiz monocrático que julgou o
caso foi Drummond. O promotor foi o próprio delegado, o intragável Bilac. Meu
advogado de defesa era Augusto dos Anjos. Pedi que fosse o velho bruxo do Cosme
Velho, mas este agora era prefeito e não podia. Contudo, agradava-me que fosse
Augusto a minha defesa. Gosto dele, além de moço incompreendido é também astuto
e tem olhos agudos – embora o promotor olhasse com desdém para ele.
O juiz disse:
- Que entre Sócrates.
- Que Sócrates, o jogador?
- Não, o grego.
- Ele não pode vir, excelência;
teve outros afazeres – respondeu Bilac.
Drummond então iniciou o
julgamento sem o grego. Mas mal se iniciou a instrução jurídica já havia a
sentença:
“Sócrates, em discurso
proferido nesta mesma tribuna, afiançou:
“Conhece-te a ti mesmo”. Isto como passo primordial ao alcance da verdade
acerca da humanidade e assim, do universo, que em harmonia e conjunto é capaz
de levar à felicidade e à paz. De modo que este é o embasamento da sentença”.
O juiz, nosso querido Carlos,
baixou um pouco os olhos, jogou a caneta ao tinteiro e leu o resto daquele
aresto primário:
“Sentencio o réu à pena da
reflexão e do autoconhecimento. Cabe recurso ao Tribunal Divino ou a Vara do
Capeta. Sem mais, digo apenas que haja escuro e novo tom de escuro; pois em
fuga despede-se da vida. Que a vida seja a fuga, e a fuga seja a morte. Assim
estamos todos quites. Digo isto e desfaço o Conselho. ”
Assim, a reflexão que a mim foi
imposta como sentença permitiu-me compreender, e transcorrer neste conto, o
ponto de vista da mensagem que me quiseram transmitir. Saiba tudo agora,
leitor. Minhas atitudes humanas covardes, insensíveis, arrogantes foram as
causas determinantes de minha morte. Ao menos foi isto que escreveram na certidão
da sentença. O documento explicou-me tudo que eu ainda não havia entendido na
boca do juiz, por causa da emoção. A paralisação de meu corpo, de meu coração,
de minha vida, enfim, não paralisou o mundo – por isto a sociedade e o caos
persistiram de relâmpago em relâmpago em meu âmago, agravados pela falta de
consciência das pessoas próximas e, de igual modo, das não tão chegadas – quais
todas elas, desgraçadamente, longe ou perto, continuaram comigo, em meus atos,
ideias, tratamentos, medos e cálculos. Tudo que vi no mágico município de
Campanella foi a marca de minha maldade.
Senhor leitor e dona leitora,
eles não quiseram convencer-me de nada, absolutamente! E nem eu agora quero
convencê-los de algo; contudo, dizendo do que entendi de viagem feita em trem
noturno e em férias peculiares à cidade tão enigmática e fantástica, e também naqueles
meus dias de condenação em Campanella, aprendi que o grande potencial humano
que leva à felicidade e à convivência em harmonia são as coisas aparentemente
inocentes; e, conforme o despacho de meu julgador, conhecer-se a si mesmo é,
simples e essencialmente, “amar ao próximo como a si mesmo” – sim, amigo desconfiado;
nisto dou aspecto bíblico ao acórdão para que nenhum crítico venha me acusar
por aí de ficcionista do delírio.
Depois de cumprir toda a minha
condenação imposta e alcançar a liberdade, recebi o título de regenerado. Não
que eu tenha desdenhado do título; afinal, títulos acariciam os espinhos do
caminho. Mas é que alcancei que aquilo era menos importante, pois minha
regeneração depende factualmente de que eu a procure sempre, em todo momento, em
todo pensamento, durante toda a vida.
Então, por fim, que veio minha
libertação. Nisto reencontrei aquele mesmo homem de meu primeiro dia em
Campanella, qual eu, naquele capítulo, esbarrei por acaso numa das ruas da
cidade e, por capricho, não quis revelar a identidade. Lembra-se, leitor? Como
não? Ora! Deixe de moleza, torne aí umas poucas páginas e releia novamente o
capítulo.
Confesso que lá fui
deliberadamente imprudente, tive a proposital intenção de aguçar a curiosidade
de minha querida amiga leitora – desculpe-me, foi uma provocação tola; admito!
Sendo assim, antes de terminar o conto, revelo então agora quem era aquele
misterioso homem. Era... eu mesmo. Não, meu amigo, não caçoe julgando ser este mistério
por quase nada ou pequeno; pois se tanto naquele primeiro dia como no último,
eu, graças a Deus, vim a interromper o meu próprio sono profundo e paralisante.
- Arthur, ô Arthur. Acorde!
Acorde, rapaz! Olha a hora. Dona Márcia está chamando para o café-da-manhã.
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Conto retirado do livro O trem noturno, Ricardo Novais, editora
Bookess.