São Sebastião do Rio de Janeiro


Neste dia de São Sebastião, daqui onde moro, vêm algumas reminiscências do ontem. Aquelas lembranças que teimam em visitar as retinas nos dias santos. Hoje é feriado, sempre será, não importa onde eu esteja; é um dia que perfaz o amor que tenho por esta terra de brasileiros.

Do local onde nasci, em São Paulo, uma cidade cinza, eu apreciava todas aquelas pessoas, meus conterrâneos correligionários, que querem a todo custo subir o elevador social numa escalada do sucesso. As consequências são impresumíveis para os que só podem ascender na vida pela escada de serviço; mas, contudo, todos passam um por cima do outro ou, ainda, de quem tiver a infelicidade de estacionar pelos degraus.



Por outro lado, no entanto, havia aprendido também a amar um povo risonho, de braços abertos, no que implica a orla marinha atracando-se com o morro e a colina, pelas insígnias e os títulos de nobreza e as comendas de respeito. Mas todos se banhando no mesmo mar...

Naquela época, comportava-me como um garoto. Pouco para pensar e, ainda por cima, muito jovem para ser feliz. Dos ensinamentos de São Paulo, levei em mim o gosto pelas pílulas de chocolate com café preto sem açúcar; de resto, a escola só me serviu para classificar minha confusão de pensamento na qual se apresentaria pelos caminhos que segui nesta pobre vida.


Deste modo, São Sebastião do Rio de Janeiro, dos “zé-pereiras” e do morro Cara de Cão rondando o aterro do Flamengo, influiu em minha alma adentrando meu coração pela Baía de Guanabara. O lado que ia do Cristo Redentor à Marina da Glória e de lá ao Engenho era minha área; aquela era a minha cidade maravilhosa! Se eu tinha meus limites tamoios na minha terra da garoa, no sentido linear, entre o mar e o maciço Carioca, eu era um autêntico Goitacá em um campo dos goitacás.



Corria atrás das moças da Urca, da Praia Vermelha, do Leme e de Copacabana. Eu bebia no centro, em Santa Teresa, indo descobrir a tradição do Bambo dos Tangarás em Vila Isabel. Percorria a zona da boemia onde Alfredo da Rocha Viana, o Pixinguinha, Afonso Henriques de Lima Barreto e, mais tarde, um certo Vinicius sonharam os amores mais impossíveis; numa esquizofrenia subjetiva pelos bares da Lapa, o teatro e o cinema. Da mesma maneira, andando a esmo pela Rua do Lavradinho, ébrio com outros amigos patuscos, admirando o monumental colonial do Aqueduto Carioca, enfim, sempre à procura de novas peripécias, passando pelo prédio de leitura por causa das estudantes de jornalismo. Admirava as ideias de Roberto Burle Marx rompendo com aquela suntuosidade dos jardins franceses, muitas vezes ambientes particulares e fúteis, e semeando, no Aterro do Flamengo, um paisagismo autêntico, típico de nossas florestas, com áreas e plantas contornadas pela identidade da própria América. Além disso, sem conseguir desviar meu instinto, eu tentava me recuperar na Presidente Vargas - às vezes, num desalento alcoólico, desmaiava em alguma calçada na Rua da Alfândega. Aí aceitava todos os convites atraentes para aventurar-me a subir, na contramão, a Baixada afora, desde as refinarias de Caxias às contentes ruas de Nova Iguaçu e Belford Roxo; aliás, a Baixada Fluminense, talvez aliada ao subúrbio carioca, é forma sintomática do cotidiano operacional, e também social, do Estado Federativo do Rio de Janeiro.


E o cotidiano da cidade perfaz sua sociedade. O Municipal do Rio, tradicional casa da alta casaca, certa vez, viu-se em dificuldade no período da Segunda Grande Guerra; não conseguiam trazer artistas da França, Alemanha ou outro País ordinário da Europa. Sendo assim, não vendo outra saída para conceber seus grandiosos espetáculos, os regentes se renderam as insistentes investidas do jovem compositor carioca Heitor Vila-Lobos, que já sonhava, havia muito tempo, em se apresentar no palco daquele importante teatro, mas não lhe davam chance. Apenas numa sociedade tão controversa poder-se-ia ver surgir, por causa de uma guerra, um maestro tão genial como Vila-Lobos, e mesmo assim teimaram os elegantes nevrálgicos do Rio sofisticado em tecerem primeiras críticas negativas e maledicentes à obra, e a pessoa, do criador do movimento nacionalista musical brasileiro.

O caráter de comédia ridícula desta cidade impregnou-se em mim; ou antes, era minha conduta de traços típicos que casou como luvas em mãos aos hábitos cariocas. Não sei o que houve primeiro... Contudo, minha alma, em essência, é paulista, e nunca tive muito jeito para a contemplação verdadeira da identidade fósmea deste País, o samba. Mas, em compensação, sempre tive disposição para hipocrisia, cerveja, mulher e alegria!

Eu fui bem integrado no folclore e na tradição do Rio. Minha alma fundiu-se com os costumes, as lendas e os mitos da cultura carioca.



Ei-lo o Rio de Janeiro! Que bom que me acompanhou nesta aventura na cidade maravilhosa, meu amigo leitor excursionista e grande companheiro de viagem. Já a dona leitora, “carioca da gema”, que mora em tão deslumbrante pedaço deste grandioso (e grande) País, agradeço pela orientação nesta peripécia. Não me deixou percorrer caminhos muito tortuosos, navegar por mares infestados de piratas ou caminhar por praias onde fosse alvo muito fácil... Tão logo voltarei a esta cidade que tanto amo, que tanto admiro e que é a minha própria identidade. Por favor, amiga querida, quando meu amigo leitor e eu voltarmos solicitarei novamente seus préstimos; não nos deixe a esmo nesta terra de bons malandros. Guie os olhos deste distraído autor, e também os do viajante que me acompanhará, em mais uma fascinante viagem. Grato!


Por Ricardo Novais
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* A arte de pintura que emoldura o texto é do Atelier J.Victtor, artista do tradicionalíssimo bairro de Santa Teresa, cidade do Rio de Janeiro. ** Texto aludido à passagem do livro O Boêmio, Bookess, São Paulo, 2010.
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