No metrô, Gustavo sai do
vagão. Não sai de logo, logo, mas devagar. Toda a gente está ali, ele não vê
ninguém. Vê somente uma moça. Ela é íntima, à distância.
Ele mantém verdadeiro culto
à rotina. É um charme indispensável. Carrega o próprio cadáver às costas. Já há
alguns anos, nutri um hábito extravagante. Excursiona a esmo por várias
estações do metrô da cidade e, quando pode, em trens metropolitanos pelas redondezas
da megalópole. Parece procurar algo, nos passageiros triviais, nos vagões
ordinários, nas paisagens cinza, nas curvas desproporcionais. Às vezes, fixa-se
numa parada de grande circulação. Lá no pátio da estação, ele fica exultante e
fascinado pelo andar fabricado da multidão, ou atento ao processo de arranhados
sons emitido pelas máquinas de rolamento em atrito com os trilhos da ferrovia,
e depois, de novo, ao vapor obtido pelo movimento da aglomeração de pernas
apressadas e descompassadas. Primeiro, o pensamento, sem ponto determinado,
vagabundeia enlaçado pelo odor característico dos perfumes femininos. A seguir
as ideias se fixam, pouco a pouco, percorrendo todo o local e sua mente aborta
nas paredes por causa de débeis luzes artificiais. Os olhos de Gustavo fatigam,
afinal; fecha então as pálpebras e vê, ou sente, na plataforma de embarque,
torcer-se com o vento os vapores de gás humano e mecânico, juntos, como se
homens e trens fossem máquinas de igual gênero e teor. Ouve-se o ruído das
conversas cochichadas desdobrando-se diante do séquito da composição férrea
envelhecendo, dia após dia, e, mais ao fundo da linha amarela, duas senhoras a
rirem, provavelmente, de seus maridos glutões ou dos modos do diretor de
empresa enfiando a tampa de caneta no ouvido esquerdo diante de uma mesa de
escritório. Burburinho tão cru, sujo, ordinário que captura em cheio as almas
urbanas... Cidade, cidade, este emaranhado corrupto da vida; que iludi e que
engana e que maltrata.
Contudo, naquele dia,
solitário em meio a milhões de homens, mulheres, crianças, aleijões, padres,
executivos, jogadores de xadrez, enfim, todo o mundo dentro de uma caixa
metálica com rebites de alumínio, Gustavo só reconheceu mesmo uma garota que
estava com ele naquele palco do metrô. Senhorita Marilena Soares. Mocinha
bonita, elegante, doce, discreta; ela era secretária no mesmo departamento que
o dele. Cumprimentaram-se, conversaram gentilmente sobre... a vida. Perceberam
que a vida é um maravilhoso acidente, e é também um grande engodo. Pegaram o
elevador e subiram juntos ao andar de suas respectivas seções comuns. O dia era
alegre. No fim da grande sala, que já não contava mais com centenas de
cubículos minúsculos feitos para burocratas sem rosto das primordiais tradições
burocráticas, havia uma janela de vidro que ia de lado a lado na fileira sul.
Gustavo caminhou para lá, sorriu a um, acenou a outro, serviu-se de café e
ficou a olhar para o panorama de prédios que impediam outra visão a longo
alcance. Todos os andares conspiravam para uma vida de cordeirinhos bem
ensinados. A vida escorrendo por entre os papéis, os carimbos, a tinta azul,
também a vermelha, que tem pouca tinta; fato dos mais gratos e que, sem dúvida,
contribuía para o aperfeiçoamento de seu futuro. Analisou haver muito tédio na
mentira e seus preceitos assinalados.
Virou-se nos calcanhares.
Deixou o olhar analisar a máquina multifuncional que tanto o aborrecia pelas
manhãs, a visão da máquina de café expresso o deu enjoou, olhou para as parvas
gravatas dos senhores mais velhos, os sorrisos imbecis dos mais jovens, e, no
centro do setor, uma grande mesa de reuniões onde estavam em cima bolsas
femininas, copinhos plásticos com café ainda esfumaçando, papéis amassados,
aparelhos eletrônicos de texto e, ao redor, sentados em cadeiras de um marrom
morto, três homens de cara rapada sem o paletó e cinco mulheres com cabelo de
cachorro tosado.
Gustavo reconheceu-os. Não
sorriu. Atravessou toda a sala e encostou o ombro direito no batente da entrada
principal, ainda segurava um copinho plástico vazio com a mão esquerda e a
outra estava dentro do bolso da calça social azul-escuro de risca-de-giz
branca. Percebendo o enleio que o renegava, sentindo-se até apunhalado pelas
costas, arrumou a gravata, deu alguns passos vagarosos, pé ante pé, pé ante pé,
e foi ter com os diretores de projetos e processos.
- O que têm para mim? –
ele perguntou.
Uma mulher muito magra
respondeu:
- Pra você, nada!
Marilena Soares, sentada com
elegância em seu ofício, de sua mesa bem distante dali, observava Gustavo com
admiração desde o encontro de mais cedo no metrô e percebeu a alteração em sua
fisionomia...
Violentíssimo foi o ataque!
As cadeiras voaram, as mesas
racharam, a máquina multifuncional parou de fotocopiar papéis assim que recebeu
um forte pontapé, os vidros foram quebrados a murros. Gustavo ficou fora de si.
Agressivo, ninguém o segurou. Teve um colapso de fúria, raiva, ódio. Por tão
pouco e por tudo, gritava com demência: “Eu sou doido, ouviram? Eu sou doido,
e com todo direito de sê-lo!”.
Com o escasso saldo
laborioso decorrente da justa causa, aliado às economias de todo sangue
derramado por anos naquela maldita empresa, ele montou a própria firma. Firma
pequena. Mas, às vezes, pequenos negócios são grandes coisas... Um dia, de
tardezinha, bate à porta de seu novo trabalho uma garota linda, meiga, mulher
esculpida pelos seus sonhos mais doces e assobiados bem devagarzinho...
- Marilena! – disse num
sobressalto. – O que faz aqui?
- Soube que há emprego... –
ela deu um sussurro de firme charme.
- Mas...
- Quais as obrigações e
direitos?
Houve breve silêncio, ele
estava de fato surpreso. A candidata insistiu:
- Fale, analise meu
currículo, por favor.
Gustavo, que sabia de suas
excelentes qualificações profissionais, tartamudeou tirando uma caneta do bolso
da camisa sem ter papel algum nas mãos:
- Ah... Desculpe! Horário de
oito da manhã às seis da tarde, uma hora de almoço, assistência médica, vale
refeição etc.; Mas... Bem, o salário...
- Meu salário é altíssimo! –
exclamou ela prontamente, dando um sorriso irresistível.
Foi nisto que Gustavo
lembrou-se da reflexão, obtida em um de seus inúmeros passeios ferroviários, de
um ancião passageiro de trem: “Afinal, pensando nas aflições espantosas da dona
Clarice Lispector, ser feliz para conseguir o quê?” E, sorrindo por trás dos
óculos de lentes riscadas, eis o adágio do velho: “Nesta estação o carro que
nos leva passa muito rápido, e as pessoas perdem-se na multidão. Mesmo a
esperança, tão ciosa de si, já pegou o último trem da meia-noite... Estamos por
um milagre, meu jovem; um milagre!”.
Por
Ricardo Novais