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Os negócios não iam bem. Eu era formado recente,
e escritório de advocacia tem que ter clientela. Minha clientela era a de meu
sócio, o doutor Jader Zanzone. Doutor Jader era um velho de sessenta e poucos anos,
muito branco, quase pálido e calvo, que era pai do Marcos, um colega meu da época da
faculdade; como o Marcos foi morar na Europa, indicou-me de sócio minoritário do
pequeno escritório de seu pai.
- Vamos dar um jeito, meu jovem! – dizia o Doutor Jader, sempre com um sorriso bonachão.
Verdade é que desde que o nosso maior cliente, o
Bingo Zona Sul, findou na contravenção, entramos numa crise financeira. Os legisladores
brasileiros cismaram que o jogo de bingo deveria passar de jogo de senhoras
para jogo de azar. Azar o meu!
Acontece que o Doutor Jader não estava nem aí
para aquele escritório, ele era rico e dono de fazendas no interior. Mas se
compadeceu, talvez por mim, talvez pela meritocracia de fazendeiro ou ainda pela
pura influência de seu melhor amigo, o Doutor Pedro Moura. Doutor Pedro era um
advogado gaiato, também deveria ter passado dos sessenta anos, mas não
aparentava mais do que quarenta. Era um senhor negro de barba branca,
sempre alinhado em um terno cinza risca-de-giz e sapatos envernizados. Ele também
era rico, e metido a líder espiritual.
- Vamos no centro espírita... Você vai conosco! Sua vida vai
melhorar cem por cento, filho! – dizia-me convicto o Doutor Pedro.
- Vai mesmo, meu jovem! É uma coisa inexplicável,
diviníssima! – completava Doutor Jader, sempre sorridente.
Eu engoli minha descrença e os acompanhei. Era
uma sexta-feira, passara das dezoito horas. Entrei no local, muita gente vestida
de branco. Apenas eu metido em um terno preto bem vagabundo. Doutor Jader e
Doutor Pedro estavam alinhados em ternos caros e cinzas, possivelmente de grife
italiana... Difícil recordar-se de tudo.
De repente, cessou a sessão comunitária. As
pessoas dispersaram, como fantasmas. Então fui levado a uma sala, sozinho.
Entrou um senhor. Em um primeiro momento, pensei ser o Doutor Pedro, dada a fisionomia,
mas as vestes dele eram brancas; parecia até que usava uma batina.
O homem entrou fumando um charuto. Aquilo me incomodou,
um pouco, mas eu nada disse. Um dialeto ininteligível começou. Lembrei-me dos
padres católicos do catecismo que, em dado momento da cerimônia religiosa
cristã, também falavam uma língua próxima e incompreensível; naquela época, eles diziam que era
Deus falando com seus fiéis.
O negro, vestido de branco, fumando um
charuto asfixiante, também falava a língua de Deus; pensei. Pensei, nada disse,
outra vez. Controlei-me, mas algo estranho ocorreu.
A porta se abriu. Doutor Jader, branco como um fantasma bonachão, entrou segurando em
sua mão direita uma garrafa de pinga, dessas de marca ruim, e na outra mão ele trazia uma galinha, uma galinha preta; pretíssima! Ele a segurava pelas asas e ela esperneava em desespero.
Havia também entrado um porco, rosnando forte e todo arisco. Um suor frio correu
sobre meu rosto. O mestre espiritual jogou sal grosso e batatas por todos os cantos, pegou
uma faca grande e a fincou no peito da galinha preta. O sangue jorrou. Tive mais
asco do que pena da galinha.
O porco lambia o sangue, eu quis ir embora. Não
me deixaram sair, já estava terminando.
É triste ter que contar, leitor, mas é necessário ser fiel ao conto; é de meu ofício, doa ao leitor que doer. Perdoe-me por quaisquer constrangimentos, caro leitor e querida dona leitora. Nem todo lance de vida é prazeroso, feliz ou adequado aos costumes da civilidade. O fato é que o porco parecia estar possuído pelo demônio, dado aos gritos
horríveis que dava cuspindo batatas, mas poder-se-ia também dizer ser uma manifestação de Deus. Eu sei que
o mestre espiritual, ainda esfumaçando o lugar com aquele maldito charuto,
dizia algo baixinho, sussurrando em homilia; Doutor Jader repetia ao estilo do
terço-do-rosário. Por um breve momento, julguei ser uma sinfonia diabólica, devido a tanto sangue, penas pretas, batatas masticadas e cuspidas em formato de tridentes; no entanto, logo percebi que eu não estava ameaçado.
Nada era possível se compreender naquele altar, exceto que o porco chafurdava no mar de lama formados pelo sangue, cachaça e batatas; que focinho suíno aterrorizante! Por fim, repentino, um
silêncio tomou conta do ambiente. Os dois homens fecharam os olhos, o porco
parecia estar desmaiado e a galinha já não mais agonizava. Deram-me sete velas,
cada uma de uma cor que, naturalmente, não me recordo quais eram.
Depois das orientações sobre as velas, fui para
casa. Dormi mal naquela noite, tive pesadelos horríveis com porcos assassinos cuspindo batatas quentes mortais e com galinhas sendo dilaceradas por guardas do inferno. Logo cedo, acordei com minha
mãe, católica apostólica romana, jogando as velas no lixo, irritada, rezando
para que eu me firmasse na vida; desfez-se assim o trabalho espiritual. Há coisas que as
religiões não explicam, mas é permitido competirem em meio à nebulosidade pela
falta do aclaramento.
Como o conto precisa terminar, mesmo contra minha vontade, digo apenas que me
demiti do escritório. Arranjei outro emprego longe dos doutores espirituais, e
fiquei sem saber se sangue de galinha preta, misturado com cachaça, causa
ressaca em porco ou se as penas pretas são eternas nas memórias do povo de Deus.
Por Ricardo Novais