Casario com Igreja ao Fundo, de Tarsila do Amaral.
Quando acordava às 04h15min
da madrugada e ia trabalhar no garimpo de ouro, Zé Índio se chateava apenas ao lembrar que voltaria para casa ao fim do dia. Ele já não suportava mais os gostos
extravagantes da esposa, os filhos reclamando do lugar bucólico onde viviam e ainda
reivindicando outros gastos a sustentar a vida honrosa em cidade pequena.
O pobre-diabo começou então a
não mais voltar para família no horário habitual. Esticava o expediente no
boteco de esquina, perfazendo noites fantásticas e amizades vadias. Por um
tempo foi um garimpeiro de ouro feliz.
Contudo, depois de algum
tempo, a mulher o repreendeu, e os filhos desconfiaram do novo comportamento do
pai; assim foi, e o homem percebeu todo desgosto de se viver como cordeirinho.
- Medíocre! – dizia ele a si
próprio.
Zé Índio, no entanto, tinha
um sonho: conhecer a cidade de São Paulo. E tomou a decisão, sentiu mesmo que chegara hora de
partir da terra que o maltratava, deixar a angústia e os parasitas de sua existência para trás em busca de nova terra bandeirante que tudo realiza. Mas
nem tudo é tão essencial a ponto de apagar o resto... Barraram-no ao tentar
embarcar no aeroporto de Val de Cans. O amante de sua mulher, a mando dela,
impediu o garimpeiro de voar para o sudeste brasileiro. Naquele dia, houve
briga e muita confusão em Belém.
Humilhado, Zé Índio foi
obrigado a voltar ao lar desonroso. Não suspendeu os olhos, nem aos filhos nem à mulher. Entrou, soltou as malas, tomou banho, deixou-se deitar ao chão e,
no dia seguinte, foi trabalhar à procura do mesmo metal áureo já tão seu reconhecido.
Trabalhou somente até o
meio-dia, sem nada de ouro encontrar. Passou toda tarde no bar com amigos de
vida estróina. Foi assim o mês inteiro, o seguinte e findo seis meses, já o
viam caído nas calçadas da pequenina cidade. Todos os seus correligionários o
respeitavam como grande patusco; por outro lado, ele recebia os olhos agudos de
conservadores e religiosos do local.
Certo dia, ele combaliu embriagado
na rua da Igreja do Carmo. Avisaram a família que o defunto tinha feito o
passamento. Morreu o desgraçado, provavelmente, durante a madrugada e ficou lá
até sol alto. Era uma manhã até fresca de primavera, os filhos chocaram-se um
pouco com a notícia, a esposa teve vergonha do estado social lastimável do
outrora tão respeitoso senhor seu marido.
Os funerais iniciaram-se. Deitado
ao esquife, Zé Índio parecia feliz; tinha incorrigível traço perpendicular elevando-lhe
as bochechas e uma luz débil atravessava o vitral do salão da igreja iluminado a
face morena do morto. Quem entrasse no velório naquele momento imaginaria que o
finado estava a rir da mulher, da família, do padre, dos convidados, da vida
que perdeu, enfim.
Lá pelas tantas da cerimônia,
já tarde da noite, chegaram os amigos boêmios. Alguns tristes deveras, outros
estarrecidos:
- Zé, não pode morrer! –
dizia um.
- Você prometeu! Você prometeu!
– bradava outro.
- Prometeu! – repetiam todos
os bêbados.
Exatamente às 04h15min,
geralmente a hora que o Zé índio levantava para ir ao garimpo, surgiu à sala imenso
clarão fúnebre, assustando a todos os presentes; que, àquela hora, não eram
mais que os filhos, a mulher e seu amante, o padre, alguns vizinhos da igreja e
os amigos patuscos. A diminuta multidão perdeu a consciência; depois de algum
tempo, compreendeu-se que o cadáver já não estava mais no lugar habitual de
ofício de um bom morto.
- O finado se libertou! –
gritou o dono do bar.
- Cale-se! – ordenou o pároco.
- Calma, seu vigário. Vamos
procurar o Zé...
Mas não houve jeito de
encontrar o morto. Ele não estava em aresta alguma, desapareceu como que por
encanto. Alguns se assustaram, outros caçavam explicações e havia muita indiferença
para com o sumiço além-mundo.
A família de Zé Índio até que
se aliviou do encosto; um pouco apenas, pois ainda havia de cumprir boa presença
à frente do povo.
- Seu vigário...
- Não sou vigário, meu
filho. Sou pároco! Entendeu? O dono deste rebanho.
- Sim, seu pároco. O senhor
é muito sistemático, uê! Não tem base um negócio deste, não...
- Meus filhos; Zé Índio está
sendo um mal morto, muito rebelde e não respeita a vontade divina...
Entre lamentos, vizinhos
gargalhavam; e os amigos boêmios perceberam nos bolsos do paletó um papel
amarelado e muito sujo. Os filhos não tomaram ciência das heranças; a viúva,
orientada pelo amante, contestou a escritura apresentada ali que garantia posse
dos garimpos de ouro aos amigos vadios do finado.
- Ele cumpriu a promessa, Zé
Índio é Cobra Norato! – afirmou um dos bêbados.
- Cumpriu, cumpriu!... É o
Cobra Norato! – ratificaram os outros.
Isto foi no início da
primavera; Zé Índio aportou em São Paulo para reflorescer sua vida como bem
desejava. Assim foi. E, embora viver entre “franceses” seja coisa árdua para um
descendente de Tatuí que necessita de casto leite de mulher, o defunto que não
morreu foi visto deitado numa feliz calçada paulistana.
Por Ricardo Novais