Viajando por Caminhos e Sonhos


Trecho antigo da Rodovia Fernão Dias. Foto da cabine de um Flecha Azul, chassi Scania, carroceria CMA; década de 1980. Arquivo de família da "roça grande".

“Vais à busca de tua vida! Siga em frente, confie em Deus e mantenha a honra! Deus te abençoe”. Foi isto que meu velho pai disse-me à porta do Flecha Azul na rodoviária de Belo Horizonte.

Quando desembarquei na rodoviária do Tiete, em São Paulo, lembrei das palavras ditas na minha cidade natal. Pensei no que me fazia deixar aquela família querida, meus amigos, o Atlético, o doce de leite da dona Rosário, a cerveja do Colégio Santo Antônio, o sossego do meu bairro rodeado de montanhas calmas e verdes, a linda Ritinha, enfim, por que eu larguei uma vida para trás e fui caçar outra numa megalópole desconhecida?

Eu nunca consegui uma resposta para esta pergunta. Eu tinha 20 incompletos de idade quando cheguei àquela saladeira enorme e variável. A cidade acolheu-me com frieza, senti-me triste e sozinho. Muitas vezes quis pegar o Flecha Azul de volta. Mas lá vinham no inconsciente as palavras de papai: "Vá buscar tua vida, meu filho!” Eu continuava entre galhos e espinhos num minúsculo apartamento quarto e sala do Jardim *** que ainda era dividido, por móveis e cortinas, em outros cômodos – eu residia com outros 3 amigos mineiros que trabalhavam comigo na metalúrgica Tecno-Tec-Press.

18 anos trabalhando nesta firma absorveram meus sonhos de regressar à minha terra; junte-se a isto uma moça loura, de nome Isadora, que me deu dois filhos varões. Um morreu há dois anos; bateu a cabeça na quina do painel de seu carro no qual dirigia embriagado, numa rua ordinária de Guarulhos, e teve hemorragia cerebral.

Muitas vezes, quando meus filhos ainda eram crianças, viajávamos à Minas Gerais para os meninos visitarem os avós, minha esposa descansar da desdourada cidade grande e, de fato, também para que eu pudesse reviver meus caminhos. Não íamos de avião, a passagem era notavelmente rápida, mas estreita, devido ao oneroso preço do carne de embarque de viajem – percorrer grande distância via área só em caso espetacular, como a morte de ente querido ou arrolamento de bens em herança.

De modo que nas férias embarcávamos na aventura do transporte terrestre, feita realmente pelo saudoso Flecha Azul, com incrível chassi e motores Scania, e carrocerias CMA com rebites de alumínio ao estilo californiano. Flutuando como verdadeiro cometa na Fernão Dias... Dois pontos, duas casas, um abraço... Ainda depois de ver meus filhos adultos, mesmo em Congonhas ou na Pampulha, vendo a feição desconhecida do homem que mora no aeroporto, que aguarda um ídolo, um parente ou qualquer viajante que desembarque, mesmo assim às portas da tecnologia aeronáutica que barateou o custo da viagem, eu sinto vontade incrível de percorrer a velha estrada, a rodovia antiga, terrestre, morosa, vendo o mudar de cenário à janela, com mato no acostamento, pasto da vaquinha malhada, o cheiro forte do couro das poltronas do ônibus se misturando ao aroma nefasto dos restos de salgadinhos industrializados... Ê lembrança, ê lembrança que puxa outra. Quanta saudade eu tenho até daquelas paradas de descanso que o motorista da composição fazia para gastarmos dinheiro com suvenires caipiras ou com café preto de alguma fazenda da região. Eu levava tudo, as crianças queriam tudo, minha mulher comprava tudo; levei muitas vezes ali meus sonhos e angústias... Depois eu os trazia de volta.

Por vezes aquelas viagens carregaram minhas expectativas, alegrias e frustrações. Percorrendo a estrada com minha querida Isadora, com meu pequeno Raul e Renato, apenas com um velho amigo ou mesmo sozinho. Visitar meu velho pai e dizer-lhe: “Encontrei, pai, encontrei minha vida”. Era mentira! Mas eu dizia; antes não era mentira, já que minha vida ficara 18 anos para trás.

Sim, senhor que lê este relato de velho – não pense que é lamuria ou tristeza; oh, não! É mais uma constatação de uma felicidade que busquei. Mas sim, eu quis morar de volta onde nasci; contudo, as crianças tinham mais raízes urbanas e minha mulher era refinada demais para viver fora de São Paulo. Fui ficando, ficando, ficando... E ficando velho mais velho a cada dia. Também doente.

Apenas viajando alegre ou, às vezes, triste, a admirar a paisagem monótona pela janela do Flecha Azul, a sinfonia robusta do motor sibilando e escondendo sua potência violenta, o zumbido opaco dos veículos que sobrevém na rodovia, a curta parada de lanche que em muitas ocasiões incomodam, por certo, ao impaciente motorista. E, por fim, o desembarque na rodoviária, com aquelas partidas e chegadas dos que esperam e anseiam perseverantes. Aquela foi a estrada da minha vida!

Provável que eu morra daqui a poucos dias. Não me dão muito tempo. Minha mulher desconversa, mas eu sinto o câncer acometer-me. Da mesma maneira que eu sinto tanto não ter voltado à minha terra... No entanto, tendo ao meu lado a presença de vulto com brilho bastante fusco que emite certa consciência, sei que se fosse possível retornar à vida em Belo Horizonte, eu não poderia ir e também não quereria mais. A cidade lá já não é minha, é de outro. Creio que São Paulo passou para lá alguns de seus milhares de prédios e fugacidades, de modo que a viagem para o passado tranquilo é quase impossível; e, certamente, o saudoso Flecha Azul não pode mais percorrer este caminho.



Por Ricardo Novais
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