Ao mesmo bruxo

Mortos, Vivos e o Redentor por Raul Lisboa.
Cemitério São João Batista, Rio de Janeiro. Foto: Raul Lisboa.

Chego com custo num horizonte longínquo, tão sutil, tão sintomático... Quero logo ver todas as paisagens de outro prumo; assim foi; tenho o ânimo insaciável, sigo então pela mesma montanha; é longo o alcance de visão... Vê-se, ao fundo, um mar espelhado que parece azul, mas é o portal de um mundo paralelo.

Percebo que é lá que está um bruxo, de aspecto sóbrio, paciente, cônscio, embora nada revele no olhar; de certo vindo daquela certa casa da Rua Cosme Velho, o mesmo homem que tanto causou impressão em Drummond; este outro que tanto provocou alento em minha velha avó da pacata cidade de Itabira. O bruxo nada fala, tem a cara dos incrédulos e mantém um sorrisinho buliçoso no canto da boca; irritante e natural. Não me aborreço de logo; reverencio aquele diabo, mas desconfio tanto dele... O seu aceno é apropriado, refinado; ele limpa o pencenê, novinho (?); calmo, ainda com irreverente e leve movimento de contração à face, finalmente, pronuncia-se à meia-voz: “Não se acanhes, desgraçado viajante; se todos os contrastes estão no homem...”.

Não tenho palavra, lembro-me daqueles versos de Drummond conjecturando a genealogia moral dos Lobo Neves e os misteriosos olhares das várias mulheres que moraram num paço logo adiante; aliado a isto, rememoro o anemicíssimo José Dias, a força movida por combustível furioso e sinistro de Vilela, a rivalidade latente do mesmo germe de decreto de Pedro e Paulo, a agudeza quase nietzschiana da Cabocla do Castello e de Marcela, os devaneios sadios de Quincas e os cientificismo doentio de doutor Bacamarte, tudo na forma de lampejos de imaginação do Conselheiro Ayres.

Sei que este homem que encontro em tão funesta montanha é um mestre, sei também que ele é cruel; sem pestanejar este velho bruxo traçará magistralmente toda minha personalidade afetada e me reduzirá a fraco verme humano. Por certo que calculará minha dificuldade de finanças e meus vícios desesperadores, onde nunca arranjarei tempo suficiente para  tragá-los. Dirá, em conclusão, que embora ainda muito moço eu já tenha vivido minha vida inteira e não há muito mais que isto; apenas o resto, e o resto é o resto.

Vem o coveiro, acho-o sorumbático, o bruxo dirige-se a ele, dá outro sorrisinho lançando uma chama irônica, quase hipócrita, e joga a reverência:

- Caro Ezequiel, que faz?

- Não sei; não sou mais um jovenzinho, nem velho... Sou pai de família! – exclama com um tanto de desprezo, próprio de quem carrega dor intensa desde cedo pela ausência de seus progenitores.

- Teus filhos têm orgulho de quê?

- De meu sucesso.

- Mas eles não têm nenhuma decepção contigo?

- Claro que sim! Peço ao bom Deus que lhes conservem bem de saúde e que sejam promissoras suas carreiras; sabe, são doutores, um de ciências jurídicas e o outro salva toda gente; mas nem sempre podem ter tudo...

- E qual a decepção afinal?

- Ora, qual; de terem nascido no Brasil.

Começa a escurecer, nem toda a paisagem do mundo devolveria luz àquela colina; e, sem o clarividente sol, um cambaleante pombo cinza sobrevoa por sobre os homens, e distraem-nos à contemplação do São João Batista. De repente, o bruxo foi-se primeiro, afastando-se sem dizer palavra, apenas o gestual denotava a metalinguagem de mármore, tão fria como as maçanetas das portas que zombam daqueles que tentam, em vão, entrar às casas, mas que, ao mesmo tempo, revela, dissimuladamente, toda a sutileza e sabor da vida.

O coveiro ainda acompanhou-me até o portão da necrópole, depois sumiu. Mas eu já estava a salvo.

Por Ricardo Novais
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