Pintura Cole de Véronique.
Logo nas primeiras horas da manhã, o sol, muito bonito e acolhedor teimando por nascer, embora com pouca força, trouxe-me uma paz tão prazerosa. Não sei de onde veio esta sensação de olhos mansos, tão afável como uma cantilena do século XVI entoada por coral de igreja renascentista.
Pergunto a um pombo menos arisco:
- Que tem?
O pássaro, calmamente pousado no parapeito de um prédio público, estava a observar os movimentos da natureza:
- Quem?
- Ora quem, o sol; quem mais poderia ser? Que tem ele que não vem logo?
- Ah... Não é dado a nós saber isto! – exclamou o pombo do alto de sua circunspeção atilada.
- Deverias saber; ave preguiçosa! Se tu ficas bem aí, o dia todo, vendo o povo passar, vendo a vida florescer e ficar grande e depois chegar ao seu anoitecer. Pobre vida!... Tu deverias também dar conta do sol.
- Ora! Se tu, que é bicho homem, como dizes, com poder de raciocínio incrível, não tem resposta.
- Acontece que tenho outras obrigações! – tentei justificar. – Tu não, tu tens mais tempo.
- É. Fico um pouco e logo parto.
Neste momento, conjecturei a ele:
- A felicidade deve ser isto mesmo, saber das coisas e depois dar azas pra ela.
- Sim, é verdade – disse o pombo com movimentos morosos ao bico, em seguida ponderando. – Mas não saber de tudo, às vezes, traz mais felicidade.
Terminando o diálogo, cada um foi ter com seus ofícios. Eu ainda constatei a beleza do dia, o movimento constante da vida se esvaindo, célere, firme, indiferente. Subi as escadas, degrau por degrau, olhei o panorama envidraçado, notei os raios solares beijando a face do rio imundo e pude ver o meu amigo pombo, tão querido, a sobrevoar pela cidade. Observei tudo. Foi um voo curto, nem mais nem menos, foi preciso, calculado; um voo tão bonito!
***
"Jesus Alegria dos Homens", toccata de Johann Sebastian Bach, interpretada magistralmente por Baden Powell:
Por Ricardo Novais