Parque da cidade com a garça asseada e sem a cintilante borboleta azul... Arte do blog. |
Três
ou quatro borboletas batiam as asas frenéticas e contentes a alçar voo pelo céu resplandecente do parque da cidade, numa harmonia descompromissada e
deleitosa. Súbito, arrebenta horrendo efeito imponderável. Uma das borboletas,
a de tom mais azul e cintilante, pousou por instante gentil num parapeito de
prédio comum encantando a dona da varanda. Mas tamanho encanto virou
hostilidade. Surpreendida, a borboleta ferida e assustada voou o mais célere
que pode de volta ao parque. Lá se reconfortou numa grande e florida árvore,
muito esverdeada, e, com o apoio das amigas lepidópteras, sorriu à própria
sombra. Entretanto, a borboleta machucada não podia mais voar.
Não
sabe como é triste, leitor, a vida de uma borboleta que voar não pode mais. O
cancro lhe consumia até tão menor do que os pensamentos férreos, como tenazes
ao arcabouço, e do que a imaginação, verve e repentina, de um elegante sobrevoo
à esquina da Rua XV de Novembro, flutuando, sorrateira e saborosamente, na ala
sul da Praça da República e norte da Praça da Bandeira. Mas fantasiando o
abstruso, encarcerava ao mesmo tempo a alma; e cantando solitária e melancólica
a poesia do que se perdeu, desejava voltar à perspectiva de pequenina larva.
Centenas de sonhos insistiram por pisotear sua vida... E, como o tédio
enraizado a tudo ensina, desistiu de tentar debater as asinhas; e foi este
também o último solilóquio da cintilante borboleta poeta – tudo revelado pela
prosa testemunhal oblíqua de uma asseada garça que ainda vive naquele parque.
-
Libertou-se. Pobrezinha! – constatou a garça.
-
Toda borboleta tem direito a voar... – concordaram as amigas lepidópteras, surpreendentemente conformadas, num agrupado suspiro de lamento tão resignado como acolhedor.
Por Ricardo Novais