A Vida e a Morte na Cidade Grande


Cortejo da vida...

Ontem morreu um homem importante na cidade. Eu fui ao enterro. Depois, quando já tornava novamente à vida, fiquei pensando no respeito que os que ainda não feneceram têm pelos mortos e pela morte. Está bem, conto tudo, vá! Não retornei à vida, fui ao enterro de mim mesmo. Mas as impressões que tive em cortejo não mudaram muito agora que estou em outro plano, percebo como a morte iguala as pessoas. Neste momento derradeiro, os homens se equivalem uns aos outros. Assim, as molas mestras da manutenção do mundo de aparências e conveniências que regem esta nossa vivência são, tediosamente, dispensadas pela realidade crua da necessidade de encher um pouco o vazio da eternidade. Repare como todo o respeito que faltou em vida vem após o falecimento, na presença do corpo morto, com o luto circunstante, os círios, aquele cantochão clarividente, as orações fúnebres, duas velas enormes lançando uma chama irônica, o esquife, o féretro, os panos roxos, o réquiem, as lágrimas e os risinhos pelos cantos, o sepultamento no campo santo, na suntuosidade da cova, catacumba, túmulo, tumba, sarcófago, jazigo, mausoléu e, enfim, nos dizeres pomposos gravados no epitáfio.

Isto aponta que os homens mostram-se, genuinamente, na hora da perda fatal. Graças ao bom Deus eu sou mais próximo da morte que o estimado amigo e que minha tão querida amiga, pude senti-la, sentir o seu gosto. Garanto que é amargo, mas não é de todo desagradável; tem gosto de café sem açúcar. Já senti também, bem íntimo, o aroma da bajulação de meu cadáver em velório, das piadinhas amenizando a dor e ajudando a passar o tempo até o enterramento de meus restos, e vi tanta revolta contra a morte... Pobre morte! O que tem ela a ver com o sofrimento dos homens? Apenas cumpri o seu papel de levar o morto, como o coveiro cumpre o dele de enterrar o cadáver, as mulheres cumprem o seu de chorar ao velório e os homens o de discursar antes da última pá de terra. Cerrando bem meus olhos vejo um homem, todo vestido de preto, proferindo: “Que Deus receba nosso querido Pedro entre os seus!” De tal modo, que nesta estação, descobrirei toda a beleza e bondade escondida nos cantos do coração. O homem de preto ainda diz: “Sua vida valeu a pena!”. A felicidade que sinto em constatar que minha vida valeu a pena compensa todo o esforço que fiz para escrever este texto fantasmagórico enfadonho. Digo em conclusão apenas, com toda minha autoridade de morto-bem-morto, que viver plenamente implica em passar por percalços, recuperar-se deles, em seguida cair novamente e, por fim, levantar-se outra vez. Hipocrisia? Não sei dizer... Sei que caminhar desta maneira sucessiva, constante, é devido ao ritmo que é mesmo incessante. Agora, que sou quase letra morta, reconheço que viver é bom.


Escrito por uma alma penada, de certo de mau morto, desconhecida que voltou ao mundo por engano, deixou escrito este texto aos vivos, mas já tornou ao além-mundo. Psicografado por Ricardo Novais.

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