Crônica da Despedida

Livros velhos sob à velha mesa...

São três livros. Três livros de Jorge Amado sob à escrivaninha do sítio da família. Isso é tudo. Tudo o que coube do legado de meu avô Nicolau. Será que de todo sofrimento, de toda alegria, uma vida, só isto que resta? Será que além de fotografias penduradas com prego enferrujado à parede, de objetos pessoais do morto guardados no fundo de um velho baú  marrom e de uma espingarda entupida de matar capivara na curva pendurada numa alça do batente superior da porta da sala, tem algo mais a permanecer? Onde, onde foi parar tudo aquilo que por tanto tempo prezamos e que era para nós tão precioso, familiar, próximo, forte? Que aconteceu com o que só como fosca lembrança se esvaiu ao entardecer alaranjado de um final de dia quente de primavera qualquer?

Lembro dos três livros sobre à escrivaninha com curta lágrima no olho direito. Meu avô estava morrendo, consumido por câncer. Toda vez que retorna a lembrança daqueles livros, confronto-me diante do enigma que é a morte. A morte é a morte!...

Cecília Meireles escreveu, certa vez, no Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro, em mesmo ano de sua morte, talvez já a pressentindo, umas linhas que corroboram meus sentimentos:

“Tenho horror a hospital, essas casas de tortura – passo mal só em avistá-los, de longe: no mundo que minha imaginação figura eles seriam completamente abolidos – todas as pessoas teriam o direito de morrer em paz, em suas casas, de morte natural”.

De meu avô Nicolau sobraram apenas os três livros velhos sob à velha escrivaninha. São três livros clássicos, austeros, pesados, como era de seu feitio. O primeiro é um conto magnífico e também sintomático: "A Morte e a Morte de Quincas Berro D´Água"; o outro, um belo romance, é "Terras do Sem-Fim"; mas curioso mesmo é o que eu nunca li, "Capitães de Areia". Ele fica lá, sob à mesa de madeira empoeirada e carcomida pelo tempo; às vezes, o livro parece fitar-me, tal o modo que fixa-se em minhas retinas. Porém, poderia ser qualquer livro, pois há tantos livros no mundo... e ainda tanto mais deste escritor baiano. Mas era uma época de riqueza, para vovô; e sobraram apenas as três obras, que não se estranharia tivesse sido um jogo de dominó, de vespa, do Santo Rosário ou outro objeto peculiar.

Noutras vezes penso que a vida é para ser vivida hoje, agora. A fugaz lembrança de meu avô, sentado, lendo e pitando uma cigarrilha de fumo bruto, remete-me a isto. Ainda que sonhemos, lutemos pelo sonho, que tenhamos esperanças e corramos ascendendo numa grande escadaria. Uma hora cessa, para, acaba. E aí, o que acontece?

Não sei. Só consigo me lembrar dos malditos três livros, já de folhas encardidas e corroídas pelas traças e outras pragas, lá em cima da escrivaninha de vovô Nicolau. Amado vovô! Saudade, vovô.


Por Ricardo Novais
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