A
câmera de vigilância de certa praça pública insistia em mostrar os movimentos céleres
de uma criança de rua vendendo drogas para um meirinho de escritório e para uma
dona de padaria. O garoto, que parecia num dia especial de comemoração pessoal,
deslizava num balé magnífico pela calçada de mármore preto e branco à direita a
entregar a encomenda, cumprido este ritual lá ia ele à esquerda por entre o
jardim da praça com outra mercadoria solicitada. Era um bater de pernas violento,
do mesmo modo eram frenéticos os clientes da pequenina caricatura de traficante.
Observando as imagens há dias, as autoridades de vara de infância apelaram à
polícia para dar fim àquela peça de tragédia urbana. Chegaram as viaturas, os
viciados descompuseram-se pelos cantos nauseabundos, os transeuntes fizeram
mofa do garoto que ainda tentou esconder-se correndo à santa catedral, mas foi
pego como herege.
Os
policiais o jogam dentro do camburão. Lá no fundo daquela viatura sombria,
apertado entre meliante adulto, a criança chorou assustadoramente. Gritaram que
se calasse o pranto.
-
O que aprontou você, garoto? – quis saber o bandido experiente.
O
menino nada disse e se limitou a pensar que ele seria aquele grande bandido
amanhã. Entretanto, aquela pequena criança não chegaria a ser nada além de
arquivo policial – em futuro. Nem toda lagarta vinga em borboleta. Levou um
tiro, o infante.
No
hospital, o médico legista pediu que avisassem a família do pobre-diabo. O
enfermeiro, não se sabe como, conseguiu um número de telefone; ligou:
-
Alô, preciso falar com os pais ou responsáveis do menor J***...
-
Não é daqui!
-
Mas ele tinha com ele a certidão de nascimento...
-
Não é meu filho!... É bandido! É trombadinha! É trombadinha!
-
Ele morreu, minha senhora.
-
Não importa, não é meu filho! E... Não me perturbe mais com isto!
Ao
desligar o telefone, aquele simples enfermeiro de ordinário hospital público
ficou a pensar que a vida é igual para todos, mas o sonho, ah, este muita vez
é ficção fantástica, e inacessível.
Creio
que eu ainda não disse, leitor, de modo que digo agora. Era mesmo comemoração
especial; o menino estava completando 10 anos de vida em exato dia de sua
morte.
Por Ricardo Novais
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