Narciso, de Caravaggio. |
"Hoje ao diabo, se o eu não fosse, me daria eu
próprio."
- MEFISTÓFELES, de Goethe.
Por causa de meu novo emprego
na agência de e-commerce, mudei-me para um pequeno apartamento, conjugado de
quarto e sala, da Alameda Santos. Não é ruim, a vista da cidade é ardil e nem
pago aluguel; todo o custo eu logo despacho à empresa. É certo que mal paro
dentro do cubículo, fazendo-o apenas de dormitório e para
aventuras efêmeras da noite. Contas da empresa... Coisas maiores, leitor. Coisas maiores.
Pelos corredores, que não são
mais que três ou quatro já contando com a minúscula aérea de serviço, há quatro
ou cinco caixas de mudanças me pedindo para desocupá-las. Toda a casa me pede para
desocupá-la; não o farei tão cedo. Contas da empresa... Ora! Não me tome por apócrifo,
leitor. Apenas acompanho o contrato de Rousseau. Também não me julgue
preguiçoso por não desencaixotar as tralhas da mudança. Pois que ontem mesmo, verdade
que menos por vontade que necessidade, eu peguei a maior das caixas e fui
tirando dela as coisas do advindo; até que, ao fundo das coisas, encontrei um
retrato, íntimo e carcomido pelo tempo.
O que se cai do passado de
alguém não se desapega, caro amigo. O retrato que encontrei não é meu, nem
mesmo tenho ideia do porque dele estar ali às minhas coisas; devo tê-lo trago por
engano, só pode, de certo que sim. Fixamente, olhei-o e veio vindo um filme quase francês em
minha cabeça. Pendurei-o à parede, provisoriamente. A pintura, emoldurada por tachinhas
metálicas presas à madeira encanecida, data da época do casamento de meus
pais; talvez um tanto menos ou, que sabe, um tanto mais.
Na pintura, que aparenta mais
uma velha fotografia, vê-se meu pai sob aspecto circunspecto, quase o oposto de
sua personalidade dócil e suave. O olhar é compenetrado, fiscalizador. As
meninas dos olhos correm dentro da cara, presas ao retrato. Observadores, os
olhos, percorrendo ágeis a superfície da alma do observado, contrapõem-se ao manso e sistemático bigode. Bigode espesso e
negro no rosto branco e pálido que dão feitio quase sagrado à efígie. A
vestimenta de papai, que se vê apenas o dorso, é um terno azul-escuro que atenua um
pouco a sensação esbranquiçada da figura qual aparenta ter saído diretamente d’alguma
câmara política.
Já mamãe, ao lado do homem de
terno azul-escuro e bigode, surge repentinamente no retrato. Impecavelmente
elegante – bonita que só –, está dentro de um vestido de festa, ou algo deste
ofício, e, enrolado ao pescoço, um colar de pérolas. Não me lembro dela usando
nem o vestido nem o colar; atribua-se ao mistério do fatos requentados. Os cabelos de
mamãe, cuidadosamente penteados e escovados à moda da época, são como uma
viagem ao requinte de toda uma geração temente a Deus.
Não, leitora! Não se trata de efeito
de computador ou outro recurso gráfico do tempo em que os modelos pousaram para
tirarem o retrato. Leitora malvada! Não vê que, embora o fundo azul da imagem
entregue alguma armação não natural ou artificialidade, o retrato é
verdadeiro – ou pelo menos traz em si verossimilhança.
É o retrato da felicidade conjugal.
Se eles sofreram dores de ciúmes, ou piores, não sei. Não poderia sabê-las, pois
não se sabe muito antes que se nasça. A fotografia vale pelo original, pelo
instante de vida.
Todas as casas do outro século,
que eram grandes e espaçosas, cultivavam em suas paredes estes tipos de quadros
de família, o patriarca ao lado da matriarca, felizes e exemplares. Quando não,
também encravadas aos paredões das salas de estar, as imagens dos filhos em
quatro ou cinco facetas diferentes; ângulos quais que já se podia ler e traçar a
vida toda do retratado. Mas o costume, no entanto, também morre de velhice; e
este nosso século, tão arisco e delimitado, bem à maneira das coisas efêmeras, mudou o curso das artes visuais e fotográficas, e as criaturas
evidenciam em suas reações a irremediável solidão dos seres perdidos no mundo
em rede. Redes sociais. Todos se conhecem sem se reconhecerem, parecem sempre
felizes e sadios, embora não arranjem de modo algum tempo para curtirem tanta
vida. Vida futura, e por vezes alheia. E assim vai se escavando a pouca vida presente que tão logo será
passado.
- Não confiamos no homem, não
gostamos da vida qual estamos presas e não esperamos nenhuma boa-venturança! – disseram-me, de um coro só, as íntimas figuras do retrato entre tantas coisas velhas em meio ao apartamento recente. Foi uma
repreensão à minha reminiscência, naturalmente. Então tornei a desencaixotar as caixas...
Não tive como deixar meus pais
pendurados à parede. As aventuras efêmeras, além de cordialidades previamente solicitadas,
têm línguas bisbilhoteiras. E é este todo o mal. Sim, pois não ligo se o homem
é bom ou mau, se a vida vale a pena ou não e nem mesmo creio na boa-venturança.
Se as línguas da realidade efêmera falam pelo oficio do capital, as línguas do
passado instantâneo estão presas aos olhos, bigodes, ternos, vestidos e colares
dos retratos sintomáticos e eternos.
Por Ricardo Novais
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