O funeral do Rei Pelé

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        Escrevo é para esclarecer as emoções. Estive no velório do Pelé. A escrita vem como uma necessidade, quase sobrenatural, de descrever os sentimentos; nem sempre, é verdade, mas neste caso é este o sentido. Atribua-se ao imponderável.

Tenho um amigo que disse que “um rei não morre, apenas repousa”. Eu não conheci o Pelé, mas já o vi das arquibancadas; ele estava no camarote. Lembro-me de ter ficado feliz de vê-lo, mesmo que de longe; um súdito do rei contemplando sua alteza real do futebol.

Hoje foi um dos dias mais inesquecíveis da minha vida. Eu me lembrei de meu saudoso pai contando quando ele viu o Pelé jogar no Pacaembu em 1974, lembro dos olhinhos tão bondosos e admirados dele reconstituindo cada jogada do "maior de todos", do "atleta do século"; sempre sinto a presença de meu pai, mas hoje foi mais forte. Eu me lembrei de um amigo santista fanático que, encontrando-o recentemente, disse ser o dia do título do Santos no Brasileirão de 2002, qual estávamos juntos no Morumbi, o segundo dia mais feliz da vida dele; o primeiro é do nascimento da filha. Recordando, desordenadamente, cheguei em outro amigo santista, também fanático, que faleceu quando estávamos numa viagem juntos com vários amigos em comum. Ele morreu nos nossos braços, literalmente, pois o levamos, às pressas, para o hospital; entre suas últimas palavras me recordo ter ouvido um pedido para "seguir acompanhando o nosso Peixe".

  Lembrei-me de tudo, de nada, mas de tanta coisa. Memórias descompassadas que fizeram lembrar que a dona Celeste, mãe do Pelé, está viva com mais de um século de vida; não existe coisa mais sublime que mãe, isto eu sei por causa da minha própria mãe e seu amor incondicional.

    Eu já estava no litoral desde antes do réveillon. Estava com a família no Guarujá e marcamos de encontrar um corintiano lúcido e democrático na Vila Belmiro por volta das nove horas da manhã... Antes, percebo que o leitor torcedor e a leitora amante de futebol cantam por uma explicação. Aí vai o esclarecimento: Pelé marcou 1.283 gols, sendo este feito reconhecido pela Fifa, e o Corinthians foi o time que mais levou gols dele; de modo que um corintiano ir até a Vila Belmiro prestar homenagem ao seu maior carrasco só pode ser a lucidez da sabedoria. Pelé representa o acesso à arte da democracia do esporte.

    Trânsito terrível! Para andarmos menos de 20km até Santos demoramos mais de uma hora e meia. Atravessamos a balsa de Guarujá a Santos com ansiedade de quem tem pressa.

    Quando a balsa estava quase atracando na Praça Coutinho, que logo me fez lembrar da extraordinária dupla Pelé e Coutinho, parecia que íamos cair no mar. Não caímos, a camisa do Santos é pesada demais para sucumbir. Seguimos então para o final da fila que estava indo para a entrada da Vila Belmiro. Caminhando, lado a lado, santistas e corintianos, adultos e crianças, jovens e velhos, vivos e mortos; todos os torcedores de todos os times apaixonados pelo futebol.

         A fila era quilométrica. O calor era forte. Sol a pino, passava já dos 30°C antes do meio-dia. Mas estava tudo bem. Vínhamos de uma passagem de ano em família bem legal, um réveillon ensolarado e divertido. Assim, na fila tudo era descontração. A gente conversava, encontrava outros torcedores santistas e de outros times, falávamos sobre lembranças do Pelé, alguns se lembravam de recordações reais e muitos apenas de imaginações baseados nos registros históricos ou nas imagens emblemáticas.

      Tinha também torcedor do Vasco naquela fila. Isto me fez lembrar de meu irmão, que é vascaíno doente e vive repetindo que o Pelé era cruzmaltino quando criança em Três Corações. Avistei torcedores do São Paulo, do Corinthians, Palmeiras, Fluminense, Flamengo, Botafogo, Bahia, Grêmio, Internacional, Cruzeiro, Atlético, Paissandu, Ceará... Do Boca e do River... Do Los Angeles do basquete americano... Pareceu-me ter visto todos times e todas as cores. Mas pode ser só imaginação. Não sei quantas camisas esportivas eu avistei. O mar branco do alvinegro praiano tomava conta de toda a visão.

         Havia gente do Japão nos arredores do estádio, conversando, provavelmente, em japonês; eu não entendia nada, mas tinha umas letras japonesas que deveriam significar “Pelé eterno”. De repente, apareceu um argentino. O cara estava com a camisa da Seleção Argentina, nas costas estava a 10 do Maradona. Juro por Deus! O cara chorou. Um torcedor paramentado de México passou pela rua. Estávamos olhando o mexicano, ele passou no sentido do final da fila, que se perdia de vista dobrando os quarteirões. Depois um com as cores da Colômbia, outro da Bolívia. Ingleses se misturando com gente de São Vicente ou de Osasco, franceses com quem veio do ABC ou do Ipiranga, Vila Mariana, Santo Amaro, Grajaú, Parelheiros e descendo para a Serra do Mar novamente a Peruíbe, Pedro de Toledo, gente do sul, gente do norte, nordeste, centro-oeste. Assim foi numa mistura de povos, uma fila de gente em um funeral.

        Mas não pense a dona leitora que era um clima triste, era mais clima de emoção do que de tristeza. O choro era quase uma homenagem natural e leal. 

      Eu tirei foto de quase tudo durante o percurso desta fila para entrar no templo da Vila Belmiro. Eu bebi umas cervejas, contava piadas, ouvia histórias, relatos. Um senhor, no auge de seus setenta e muitos anos, passou, vagarosamente, fazendo graça que a fila já estava em Peruíbe. Uns falavam de outros assuntos pessoais, de preços das coisas, de viagens, do dia de folga no trabalho; assuntos diversos para passar o tempo. Nem parecia um velório. Por muitos momentos me confundia achando que era um jogo festivo do Santos FC. Tinha hora que a gente se esquecia de tudo e só sorria, alegre como se nem lembrasse que o Pelé morreu.

     Tudo bem que um rei não morre, mas o senhor Edson Arantes do Nascimento estava morto. Quando eu entrei no portão 3, que é a aquele da faixada histórica e principal, as coisas mudaram. O clima mudou. Um frio na barriga apareceu. Eu fui fotografando tudo que conseguia pela câmera do celular, mas só até na frente do caixão. Assim mesmo, foi difícil. O sol era muito forte, eu tinha bebido e a imagem do Pelé no caixão acabou comigo. Parecia que ele estava dormindo. Tive vontade de chegar perto, para ver se, por acaso, ele acordava. Ele estava dormindo naquele caixão, um sono calmo e sereno.

      Guardei o celular e chorei. Estava de óculos de sol, então nem sei se alguém percebeu; talvez minha mulher tenha percebido, ela percebe tudo...

       Fora do estádio eu estava bem arrasado. O clima tinha mudado mesmo. Parecia que a balsa da travessia Santos-Guarujá tinha dado um tranco forte e eu tinha caído no canal do estuário sendo depois tragado pelo mar.

       A sensação de ver o Rei do Futebol dentro do caixão foi a de ver seu time do coração levando um gol decisivo, tipo aquele gol que o Tevez marcou para o Boca Juniors em cima do Santos na final da Libertadores de 2003.

         Só que tive sorte e encontrei o sósia do Pelé. Eu me alegrei, achei engraçado na hora. Este sósia é o Seu Nicanor, ele estava lá, como milhares de almas torcedoras, prestando sua homenagem ao Rei do Futebol. Seu Nicanor depois disse que foi alcoólatra e o Pelé salvou a sua vida. Não sei direito como se passou a história que ele contou, nem a veracidade dela, mas sei que pedi para tirar uma selfie com o Seu Nicanor e percebi que o dia ainda seguia radiante como um gol de Pelé.

Por Ricardo Novais

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