Tratado das Cotas


STF - A justiça que nada vê, mas que tudo sabe; será?

Por estes dias, já passados, reuni-me a um grupo de amigos para uma agradável tarde regada à cerveja. Vi-me, entretanto, no meio de uma inócua batalha política. Seria de minha satisfação matéria mais deleitável, como o talento das artistas de TV, as brigas entre celebridades do futebol ou alguma votação esdrúxula inventada por algum diretor de cinema ou ex-jornalista, mas acirrou-se a discussão acerca dos candidatos de direita nestas próximas eleições. Já havia ficado surpreso com a opinião corrente na sala de que o PSDB, partido de dissimulados socialistas, tende ao pensamento conservador.

- Isto é uma temeridade! – declarou um amigo dando longo gole na garrafinha de cerveja.

- Veja – abriu uma articulação outro patusco –; o que ocorre é apenas uma embalagem política: enquanto Lula é um comunista com aparência de 'estadista' popular; Serra, ou outro tucano, talvez menos Aécio, é produto da centro-esquerda, em moldes da 'social-democracia européia'... Mas ele quer a mesma coisa que seus "adversários", ou seja, implantar uma ditadura de esquerda neste país.

Houve espanto e risos:

- Não se iluda! Extremistas de direita são fascistas repugnáveis, mas esquerdistas apelam para uma 'justiça social' que só atende a um projeto político há muito estabelecido. Graças que o maldito Prestes morreu! Ele adoraria ver o que se tornou este 'País do Futuro'...

A resposta para a cura desta sociedade hipócrita e positivista 'afrancesada' ninguém tinha naquele recinto, no entanto, discorria-se sobre a visão central de resgate de valores, há muito perdidos, com gosto. A arte, educação, cultura (não como conceito, mas como formação autêntica), religião (seja lá qual for e que pregue algo estabelecido e reconhecido pela humanidade), a sufragada família, estas coisas que muitos dirão fora de moda ou reacionárias, etc., foram assuntos recorrentes entre falatórios afetados e, à vezes, muito inconsistentes.

- Então, se for assim – disse um mais sofisticado –, sou reacionário, no sentido rodrigueniano mesmo, sou contra tudo que minha consciência, depois de muito sopesar as ideias, julga não prestar.

Deixemos isto, leitores. É que o assunto vagabundeou para outro tema, as malfadadas cotas raciais. Um velho colega de boa farra, segurando firme a garrafinha de cerveja, atacou as cotas com entusiasmo admirável:

- Também eu não seria contra, não fosse as consequências, meu amigo – declarou de pronto este mais conservador. – Perceba, corre-se o risco de haver no Brasil uma segregação racial; coisa inexiste neste país, ao menos até hoje. Há racismo, mas não declaração pública de ódio em moldes ocorridos entre sul-africanos, norte-americanos ‘sulistas’ ou mesmo da Alemanha dos anos 1930; óbvio que devemos descontar as insanidades de alguns imbecis que, às vezes, pipocam em algum rincão do centro-sul brasileiro, porém isto é a exceção.

- Exceção? Palavra bonita, pois quer dizer que não é a normalidade; correto? Mas, com as tais cotas em universidades e sei lá mais o que vai vir, a exceção pode virar regra e termos um país com vizinhos de portas fechadas sem distinção. Se o Brasil não é o país mais maravilhoso do mundo, é ao menos de boa índole. – Tais palavras foram as de um sujeito que defendia as ideias do primeiro 'anti-cotista', já este, sentindo-se seguro, continuou então na explanação que fora obrigado a interromper:

- O exemplo da UnB é o mais absurdo! – afirmou com convicção. – O ‘cotismo’ tem como critério exclusivo a cor da pele. Aí é pedir para termos guerras civis ou outras barbáries que só vemos em crimes passionais; não consta que por aí há crimes ideológicos sufragando direitos religiosos ou das etnias, sejam elas quais forem, neste nosso Brasil; meus caros. A não ser a exceção, mas desta eu já falei; não é mesmo?

Neste momento, os defensores das cotas inflaram-se, e, valendo-se dos relatos históricos gerados pelos desdobramentos jornalísticos, notavelmente as reportagens da Folha de S. Paulo que foi crítica à intervenção do senador Demóstenes Torres na audiência pública do Supremo Tribunal Federal, enumeraram as mazelas dos tempos da escravidão. Nem há muita necessidade de preencher linhas neste texto com tais pensamentos, pois, ora, não há muito mais originalidade do que vemos nos livros de história.

O verdadeiramente interessante foi a contestação do 'cotismo' feita, ao que tudo indicou naquele momento eloquente, sem a intenção de enganar a consciência. Primeiro, com repulsa:

- Aqueles moleques? Aqueles "delinquentes", como disse Edson Nery – bradou com raiva o 'anti-cotista' com lembrança na matéria da Folha.

De repente, este estimado colega, que até então permanecera afetado, falou calmamente:

- E ele tem razão. O doutor Edson tem toda razão. No entanto, o senador pisou feio na bola! Ele citou Gilberto Freyre e... Bem, Gilberto Freyre foi um defensor da miscigenação e não o contrário. Nos Estados Unidos, ele teve contato muito importante com seu mestre, Franz Boas. Com Boas, ele aprendeu a distinção entre raça e cultura. Condições culturais nos sentidos amplos, antropológicos. E foi Gilberto que mostrou pela primeira vez que os problemas de deficiência no trabalho não decorriam da miscigenação, e sim do problema da alimentação. No caso brasileiro, o negro foi submetido... – não há necessidade de dizer o resto, pois este argumento, na verdade, não passa de pensamento decorado das ideias do senhor Edson Nery.

O efeito das garrafinhas long neck, como o amigo leitor e a querida dona leitora podem imaginar, já fazia com que todos no lugar falassem ao mesmo tempo e em tom altíssimo.

Vizinhos da residência poderiam estar irritados com o barulho. De modo que não devo eu aqui incomodar outros que possam morar por perto; assim, em suma, e tentando organizar as ideias, foi isto que concluíram:

“Os candangos criaram verdadeira comissão 'racialista' para decidir se o estudante é negro ou não. Gobineau, aquele maldito 'pai do racismo científico’, se desgraçadamente ainda vivesse, teria inveja dos 'intelectuais de Brasília’... Que absurdo!”

Isto indica a polêmica causada na sociedade inteira na audiência pública do STF, onde de 40 convidados, 28 declaram-se favoráveis ao sistema de cotas e apenas 12 foram contrários. Lá, por exemplo, o senador pelo estado de Goiás, Demóstenes Torres, mal pode expor o que pensa. Foi taxado de reacionário, racista, 'lixo humano', estúpido e não foi ouvido. Que democracia, não? O que achas a dona leitora, que é sempre tão ponderada?

Este evento foi coisa que parece ter deixado a maioria de meus amigos patuscos profundamente tristes, pois deferiram mal dizeres aos 'pensadores ongistas'; disseram deles: “cafajestes". Não me esquecendo detalhes de técnica em oratória dita e que meus ouvidos envileceram, tais como: “estes pulhas, eles vivem a defender os homossexuais, a floresta, a baleia azul, o diabo, enfim, defendem a virtude com gosto, mas poucos são virtuosos”.

Agora que o desgosto torna, vem-me à mente trecho do discurso dos caríssimos questionadores pândegos, lembro que a palestra foi quase tão eloquente como às feitas lá para as bandas do Distrito Federal:

“A política de cotas se baseia numa ideia de reparação de culpa, assim não se respeita a sociedade que vive hodiernamente. Esmaga a própria lei criada por positivistas que agora defendem tal aberração. Sabemos que a culpa precisa de vilão. E os vilões são: os brancos descendentes daqueles brancos que se beneficiaram de um sistema injusto no passado, os malfeitores; e, como todo bom conto, precisa também de mocinhos: os negros descendentes dos negros subjugados, aqueles que foram impiedosamente maltratados como escravos naquele mesmo passado onde o vilão branco da mesma maneira existiu. De modo que os primeiros compensam os segundos.

Mas e os brancos pobres? Ah, meus caros, a UnB está se lixando para eles; são uns condenados eternamente pela sua ascendência criminosa... Ainda que eles sejam a esmagadora maioria dos pobres no Brasil, e não sejam, de nenhum modo, herdeiros do mandonismo dos senhores de engenho.

Isto se chama 'patrulhamento politicamente correto'; ou injustiça que se sobrepõe à injustiça anterior; tanto faz!

É uma pena que as pessoas conscientes, igual a tantos, talvez iguais a nós, ou a qualquer um que poderíamos conhecer nesta mesma sala, não sejam levadas em conta neste país. Parece que para esta nossa sociedade positivista e ‘cientificista afrancesada’ na qual estamos inseridos, mais vale protestar, esbravejar e falar algumas palavras bonitas e de ordem do que estudar profundamente o assunto, refletir sobre ele, sopesar, dar tempo para o cérebro assentar as ideias formuladas e, por fim, debater no intuito de verificar um consenso que vem diretamente da consciência.

Devemos sempre admitir que tanto o sucesso como o fracasso façam parte de nossas vidas, e, assim, tentarmos melhorar com sinceridade. Não vamos acertar o tempo todo, talvez nós acertemos pouco nesta vida, mas agir por comoção de grupos abomináveis e irresponsáveis que só querem tirar proveito de conveniências políticas é, desculpe o termo, coisa de canalha também. Remete ao velho jargão bíblico: "Diga com que andas que eu te direi quem és”.

Eis o que penso, colegas; 'hic'”.

Como vê, meu amigo e minha querida amiga que está aí a ler estas linhas antagônicas, o tema é polêmico e difícil, mas muito do que já tenha sido dito por jornalistas 'militantes' e críticos de fantasia esteve nesta tarde patusca; e, afinal de contas, o 'tratado das cotas' nada mais é que a reflexão desta nossa valorosa sociedade – e ainda mais afetado quando regado à cerveja ou outro etílico de boa cevada. Portanto, paremos por aqui este pensamento desagradável. As palavras vão terminando porque as ideias são emprestadas e a consciência pediu exame. Enfim, então vamos mesmo às curiosidades de artistas de TV.


Por Ricardo Novais

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