São Paulo teve o primeiro sistema de trólebus da América Latina, implementado, em 1949, pela CMTC, já extinta. Foto: Alexandre Gabriely.
Em
1949, São Paulo era bem diferente do que conhecemos hoje. A cidade crescia em
ritmo acelerado, mas estava longe do caos hodierno. Naquele tempo, era possível
marcar e checar aos compromissos, reverenciar o vizinho, jogar futebol em
campinhos nas várzeas de rios e namorar no portão de casa.
Foi
nesta urbe íntima que viveu Borba de Andrade, rapaz de 21 anos, simples
operário das fábricas automobilísticas do ABC e enamorado de Olívia Guedes. Ele morava
com um irmão mais velho na Vila Mariana de então, um entroncamento longínquo que ficava entre o progresso das fábricas e a sofisticada cidade; a querida Olívia, porém, vivia em agradável palacete geminado em área paulistana central e valorizada – era moça polida em francês e tediosa ao piano clássico, por boa orientação de sua família
quatrocentona.
Num
domingo de primavera, Borba comprou flores e subiu em um dos modernos trólebus que
circulavam na paulicéia da época – uma novidade para os paulistanos, especialmente
ao perímetro da Vila Mariana e Santo Amaro. Mostrando-se contente por passeio
tão agradável que o levaria à tão proeminente e desenvolvida cidade, e também sonhando com
Olívia contraída no cinema da Avenida Ipiranga a assistirem juntinhos uma das
maravilhosas películas vindas diretamente dos Estados Unidos da América, Borba
cochilou nos confortáveis bancos do coletivo. Num solavanco que deu o veículo,
ele acordou. Olhou pela janela e não reconheceu nada. Invés do progresso só via mato, nenhum
prédio, apenas bosques e árvores. Seria possível que pegara o ônibus errado? Seria possível que o motorista estivesse à contra-mão e retornando à Vila Mariana e seu ambiente rural? De
súbito, espantou-se: Qual ônibus? Não viajava mais no modernoso trólebus, mas sim
num antigo bonde da linha da fazenda de Sant'Ana e outros campos da Companhia de Jesus. Deixou as flores ao velho banco de
madeira e saltou do bonde, ainda o vendo subir, vagaroso, pela serra...
-
Mas será possível?
Sim,
era. O simples operário reconheceu o lugar, era a Serra da Cantareira. Subiu
uma colina e exclamou:
-
Sumiu a cidade, meu Deus!
Neste
momento, um homem maltrapilho, carregando arcabuz, arco e flecha, barba cerrada
e pele morena, gritou ao léu:
-
Borba!
O
eco saiu à toa.
-
O senhor me conhece? – bradou Borba da colina e pensou: - Deve ser alguém da
cidade.
Borba
desceu em direção ao velho e aproximou-se inquirindo a figura:
-
Que quer?
-
Nada!
-
Mas me chamou...
-
Venha! – ordenou o barbudo.
-
Oh, não posso; tenho que voltar...
-
Venha logo!
Os
dois caminharam serra acima. Num descampado, quase no Pico do Jaraguá, Borba percebeu
dezenas de homens do mesmo aspecto do velho a quem seguira.
-
Quem são vocês?
Todos
gargalharam sem responder a pergunta e criando nova questão.
-
Quem quer saber? Quem é ele, Borba?
-
Borba, chama-se Borba, senhor? – admirou-se o viajante oriundo da Vila Mariana.
-
Sim, Borba Gato; por quê?
-
Meu nome também é Borba, só que... Ei, espere, disse Borba Gato?
-
Sim, qual o espanto?
- A estátua... A estátua gigantesca na entrada de Santo Amaro... Borba Gato foi bandeirante...
-
Sou eu, meu rapaz. Um bravo servente do povo paulista pela graça do Senhor! Estes são meus amigos; também bandeirantes do mais alto valor! Todos aqui são
expedicionários lutando na selva, contra todos os males do diabo e protegidos pela intersecção do próprio Deus... E eu sou o comandante destes homens divinos... Esteja certo, jovem; se hoje a Coroa nos ignora reles pobres-diabos, mais tarde, em futuro grato, seremos os condutores da nação que há de vingar; pela graça do Senhor! – num gesto mecânico, o velho Borba fez o sinal da cruz cristão e passou a mão na bainha do facão.
-
Puxa, que loucura! – espantou-se o jovem Borba.
-
Vamos beber! – ordenou o velho.
-
Obrigado, mas tenho que voltar...
-
Sente-se, beba, depois vá.
Borba de Andrade bebeu com aqueles homens de tanto valor para a cultura da cidade onde nasceu, inicialmente assustado, mas logo,
com o entorpecer da cachaça, viu-se rindo e contando piadas paulistas entre bandeirantes genuínos.
-
Meu rapaz, de quando em quando passamos por aqui, neste bosque. Sempre retornamos! Aqui foi o
palco de uma das batalhas mais sangrentas, entre nós, bravos homens cristãos.
Perdi todos meus comandados em luta; e... são estes que vê aqui bebendo
convosco. Onde escutais trovões e avistais longínquos raios cruzando o tolo céu, somos nós lutando nesta serra.
-
Estão mortos?
-
Morremos por honra... Honra aos paulistas! – bradou e os outros repetiram esta homilia.
O
viajante de outro tempo, perdido e bêbado clamando por glória que julgou
balofa, chegou a contestar os bandeirantes dizendo que não continham honra
alguma, pois o interesse sempre fora por riquezas escravistas ou ouro e esmeraldas; e, pensando na reverência que os homens da sociedade de seu tempo – também os de outras passadas e, por certo, de outras futuras – deram àqueles homens guerreiros, usando-os como exemplo de valentia para conduzir todo o país já republicano, Borba de Andrade teve a audácia de conjecturar, naquela tarde extraordinária, no alto daquela colina tão sintomática para o cotidiano paulistano, que muita vez nos transformamos nos próprios monstros que criamos. No entanto, como suas
palavras fossem ininteligíveis e todos naquela reunião de épocas sortidas já estivessem com umas e outras na cabeça,
foram adormecendo e a noite caiu.
Quando
Borba de Andrade despertou da bebedeira tinha uma terrível dor de cabeça. Os
bandeirantes tinham desaparecido como por encanto. Procurou-os, gritou-os,
nada; só a ressaca etilista de pouca purificada respondia-lhe. Percebeu que o
ar era quase irrespirável, e a fumaça chegava com força à montanha. Caminhou à
beira do pico e conseguiu ver a cidade ao longe; os prédios, as avenidas, tudo
estava lá, ele constatou alegremente e muito surpreso com tantas novidades. Foi descendo a serra, devagar, meio
cambaleante e ainda um pouco ébrio, sem perceber que suas barbas agora eram grandes e
brancas, assim como os cabelos.
Chegando
ao asfalto, Borba avistou naturalmente um trólebus como aquele que havia pegado
na Vila Mariana antes de adormecer – tão seu experimentado. Entrou nele e
reconheceu-lhe todo, mas percebeu que o veículo tinha aspecto envelhecido. O
coletivo andou por avenida larga e linda, fazendo com que o aventureiro
passageiro estranhasse o panorama, mas julgou este caso ao cansaço. Finalmente, chegando
ao centro da cidade, Borba saltou de pé direito e intrigou-se completamente – o que via naquele lugar o deixou abismado. Marchas do exército, passeatas sufocadas, terroristas à esquerda e moralistas à direita. De repente, da cabina em frente à parada de transporte público, alguns militares começaram a se movimentar observando aquela figura de longas barbas brancas que descera do ônibus recém-chegado. Um soldado aproximou-se:
-
Mostre a carteira de trabalho, senhor!
-
Quê?
-
Documentos, senhor!
-
Puxa...
Borba
não tinha carteira com ele. Explicou a aventura ao seu inquisidor, paramentado pela pátria e de arma em punho, tudo o que lhe acontecera, o quanto havia bebido, as piadas contadas entre bravos guerreiros de outros tempos, a amizade recente com Borba Gato e outros
bandeirantes e que, provavelmente, estes mesmos homens haviam lhe roubado os pertences. A
confusão instalou-se. A multidão juntou para acompanhar o espetáculo excêntrico.
-
Que este velho diz?
-
Que velho? Sou Borba de Andrade da fábrica de carros, em São Bernardo do Campo. Sou
honrado trabalhador, aviltantes!
-
Os documentos, senhor! – insistia o soldado.
-
É subversivo! – exclamou um sargento de longos bigodes que acabara de chegar.
- Ô, 'milico', não está vendo que é mendigo? É vagabundo, porra!... – protestou relinchando o povo enfatiotado.
-
Sou honrado! Sou eleitor de Jucelino...
-
Prendam-no! Está vendo? É subversivo mesmo! – prontificou-se o sargento com este julgamento precipitado.
-
Esperem! Que acontece aqui? – Borba de Andrade, sem entender nada, pediu desesperado tais explicações antes de o arrastarem ao xadrez sombrio e enigmático.
O
soldado, gentilmente, talvez por piedade à fantástica história contada por um pobre velho a quem acusavam de louco, explicou-lhe que estavam em 1968, que houvera um golpe das forças armadas e que quem estava no comando do país eram os
militares. "Não falemos mais, não é prudente, senhor!", acrescentou o jovem e honrado soldado do exército. De repente, o viajante Borba entendeu tudo. Cochilou num trólebus em 1949, bebeu
com bravos bandeirantes paulistas do século XVIII e, numa viagem tão mágica como maluca,
acordou num porão ordinário de delegado ditatorial.
Deste então não
se ouviu mais falar de Borba de Andrade. É desaparecido; consta em arquivo de
pasta escura e empoeirada com o ficheiro 31.12.1968/DOPS.
Por Ricardo Novais
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