Imagem: The Baltimore Sun. |
Comida chinesa, garrafa de vinho
chileno, mesa arrumada e discurso ensaiado; eram os mantimentos. Giovanna não
desconfiou que fosse uma cilada, ou não deixou sibilar os pensamentos. Era agradável a ideia do
elemento surpresa, o choque sem respostas prontas, perfeitamente aceitáveis
dentro de um casamento em ruínas; portanto, táticas refinadas, polidas táticas
de guerra.
- Precisamos conversar... – eu disse
com hesitação.
- Sobre o quê? – ela perguntou-me desinteressadamente, degustando o vinho.
- Estou pensando em mudança,
parece que de repente a vida ficou tediosa e sem importância, quero fazer
alguma coisa para nos ajudar... Que acha, querida?
- Acho ótimo! – Giovanna
agiu impassível, e em perfeita simetria entre seu feitio e primeiras batalhas. – E que resolveu?
- Tomei uma decisão e não posso
mais voltar atrás... – ao dizer isto, senti que adentrei às linhas inimigas. Os vivazes
olhos sagrados dela se acenderam preparados para fogo-cruzado.
- Que é, Heitorzinho?
Ela entrelaçou os dedos
colocando-os abaixo do queixo, e, incisivamente, solicitou que falasse de uma
vez – “ora!”. Houve uma silenciosa tensão, na qual a tudo petrificava, incluindo
a obviedade da situação e os soldados diretamente envolvidos, tanques-de-guerra, porta-aviões, caças, canhões, fuzis, metralhadoras, revólveres de morte, armas brancas e demais coisas de ferir. Era como se um general de guerra tivesse declarado: “sangue, morte
e honra!”.
O embate se iniciou violento e
cruel, remontando a briga dos gôdos, que não transpassavam as fronteiras dos
romanos; e também Teodorico, que foi até as Espanhas para estabelecer um
domínio, acabou por incorporar a cultura cristã, assimilando-as aos suevos,
lusos e vascões – ou mesmo, cá entre nós, aos bandeirantes, que percorrendo caminhos selvagens
atrás de interesses pessoais, sem saber e sem querer, expandiram toda a nação. O
combate do dionisíaco e o socrático estavam sobre a mesa da sala-de-jantar entre os restos de
comida chinesa, resquícios de vinho que lembravam sangue jorrando de soldados feridos, enriquecidos pelo adágio, e Kant, Kierkegaard, Schopenhauer,
Hegel e Nietzsche, com suas respectivas filosofias confiscadas para além
de bem e mal, transmutando nossos valores morais, a tudo se misturaram e se fundiram: guerra, ideias e urgências do estômago.
Outro gole de vinho, os dentes de
Giovanna compactados numa faísca de irritação, que logo dominou. Aquele meu
ex-amor possuía, e creio que ainda possua, um autocontrole notável; penso que seja coisa de sua profissão.
Quando estudante de medicina, ela queria socorrer a humanidade; porém,
gradativamente, o interesse público não tinha mais tanta importância, não era
mais o principal desígnio. O dinheiro veladamente passou ao objetivo essencial.
Exatamente como os estudantes de direito e os repletos sonhos de nobreza filantrópica; quase mansos. Basicamente positivistas, estávamos mentindo porque sempre se pode
achar uma compensação para a vida...
Acabou o amor, acabou o encanto,
acabou a luz; sobraram as dívidas e as palavras de ordem. A melancolia do término
de meu casamento foi tão irônica que pensei em concluir os célebres versos
daquele maldito bruxo de mais de século, mas falta-me vontade para o ofício e
brilhantismo para o realismo. O dinheiro me faz ter muita preguiça, e o talento
que não tenho me faz ser ocioso, então fico assim e assim. Órfão de esperança, adotado pelo pessimismo. E, só tendo talento para
o conflito, falta-me também a caridade; além do mais, nem era domingo, nem
chovia, não estava na roça, não estava numa ocasião de lazer (pelo contrário,
era uma guerra) e no mato não tinha cachorro. A única vantagem para um soneto
era ser um desocupado humano, posto que as ideias não adentrassem à
cuca por falta de espaço operacional. “Perdi a batalha, mas ganhei a vida!” – embora
a vida que ganhei já tenha nascido um pouco anêmica entre as manchas de vinho, sangue e glória derrubadas no carpete da sala-de-jantar.
Por Ricardo Novais
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