A visão de Ezequiel

A visão de Ezequiel, 1518, Rafael.

Conheci-a num cinema decadente da São João. Eu ia pela minha procura perene do novo coração, ela só queria algum espírito disposto ao amor fugaz pago a crédito. Mas nos apaixonamos, perdidamente. Fomos morar numa esquina bem ordinária da São João; aluguel barato, de cômodo pequeno que perfazia toda a casa. Todas as manhãs eu sorria debilmente ao ver Mirella deitada na cama. Não imaginas, leitor, qual deleite se apoderava de minha tola alma ao vê-la seminua e quase coberta pelo velho lençol creme que se encaixava impecavelmente ao seu corpo formoso, insinuante e aventureiro. Nenhuma luz a deixava mais bonita que aquela hemorrágica iluminação vinda do abajur vermelho do nosso quarto impudico. Quarto da lascívia. E nenhuma vida poderia ser mais feliz que a dúvida universal advinda da luxúria...

- Ai, Ezequiel, você é muito ciumento, queridinho... Não! Não quero nada! Não me cobre nada! Traz uma vodca pra mim; pura, dupla!...

Quando Mirella arranjou o primeiro amante, tratei logo de quitar toda a locação. Percebi a doença crônica, incurável. Libidinosa. Mudamos para sobradinho modesto na zona sul. Vida não menos libidinosa. A Vila da Paz trouxe-me esperança, mas não tinha esgoto nem água encanada. Três meses, já estava eu arrendando qualquer imóvel do outro lado de qualquer avenida por causa das recaídas de minha querida. Enfim, não a larguei ao bel-prazer dos amantes... Grande era meu sofrimento, mas não desesperei nem desanimei. Fui reconstruir o amor por todos os cantos deste mundo. Sim, a solução era a mudança eterna; e mudar é viver! Moramos na Avenida Nove de Julho, Rua Santo Antônio, Rua Formosa, Praça Central, Praça dos Correios, Carlos Gomes, Mário de Andrade, Dona Veridiana, Consolação, Avenida São Luiz, Rio Branco, Duque de Caxias, Ipiranga, novamente São João, outra vez mais zona sul, Santo Amaro, Largo Treze, Pinheiros, de lá à zona leste, norte, Santana, Tietê, Jaraguá, novo regresso à íntima São João; em cada casa, novo fracasso. Pouco tempo, ainda habitamos cortiços no Bexiga, Baixo Paraíso, Conselheiro Furtado, Glicério, Brás, Rua do Desterro.

Minha vida estava ungida à dedicação daquela mulher extensa, larga. Rainha da cidade, madrinha do Continente. Entretanto, ao avistá-la de longe saindo da Igreja N. S. da Conceição agarrada ao homem de preto às últimas badaladas da noite, aceitei à visão do Juízo Final. Disparei seis tiros de revólver na puta. O amor jorrou diante do altar. Olhei para o rosto tépido do sacerdote; ele deu-me a benção dos enfermos. Às vezes o próprio corpo clama por alguma alma... Fiz o sinal da cruz e saí por aí, em busca do novo coração, aliviado, a assoviar o bálsamo do regojizo, a rasgar as últimas e primeiras lembranças, entre as quadras sujas e indelicadas da São Carlos do Pinhal em direção à Rua Augusta.


Por Ricardo Novais
Conto publicado originalmente na revista literária O Bule
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