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Era
uma noite escura em que só apareciam de relance centelhas luminosas. Simão
Almeida colocava o rosto para fora da janela de casa e imaginava o que estava
acontecendo no mundo, ou ao menos tentava idealizar o movimento do bairro onde
morava.
Na
escola ele seguia o grito, a fala, a respiração das outras crianças para achar
a professora e fazer a lição. No almoço ele cheirava a comida para reconhecer
sua essência. Todos achavam Simão um rapaz estranho.
Ele foi
alfabetizado pelo próprio instinto, escrevia pelo próprio instinto. Já mais
velho, estudava com afinco. Passava as ideias ao computador seguindo os sons
estridentes dos dedos batendo nas teclas e as vozes da própria memória.
Tornou-se escritor de prestígio, com leitores que admiravam a sua
excentricidade de autor.
Não
cabe aqui julgar o mérito da literatura feita por Simão Almeida, mas sim
reverenciá-lo pela tamanha ousadia em viver num mundo ainda mais escuro que
este que já é tão escuro, e, ainda, pela sua vontade irresistível de dominar as
letras. Por este tempo de trevas, ele conseguiu escrever “A Memória da Luz”, e
esta foi sua maior obra, a qual obteve o maior renome entre literatos. Mas,
mesmo assim, diziam-no bizarro nos modos e na intelectualidade. No âmbito
social era um solitário. Na vida sentimental, nada há a dizer.
O
ofício caminhava deste jeito, brilhante e extravagante. Entretanto qual não foi
a surpresa dos leitores deste misterioso escritor quando foi revelado aos
quatro ventos o terrível enigma de Simão Almeida, ele era cego - ou quase; vivia
de representar a realidade tangível e interpretar a imaginária. Pobre homem de ideias firmes... Simão enxergava
rabiscos, mas desenhava letras. Durante décadas a fio guardou com êxito
extraordinário, e até admirável, tal segredo de todos; inclusive dos mais queridos,
isto é, dos mais chegados. Simão só revelou sua enfermidade depois de julgar e sopesar sua incapacidade
de continuar se escondendo de si mesmo o resto da vida em uma sociedade dissimulada. A idade traz com ela as sentenças mais cruas e lúcidas... Desvendando-se, desvendou também o mundo; em parte. Mas resolveu ele mesmo o
enigma de sua peculiar personalidade.
-
Sou cego sim, leitor meu amigo; e daí? Isto nada interfere na grande obra que venho criando por anos e anos...
Mas poderia ser pior; caro amigo, imagine se além de cego eu fosse também baixinho e gordo?
- o escritor tinha desenvolvido o senso de deboche.
Passado
algum tempo, empolgado pelas reverências de herói e os tapinhas às costas, o
literato resolveu por submeter-se à cirurgia arriscada de correção da catarata
congênita que o cegava desde a infância. E num risco - que não foi risco de vida, já que só os espermatozóides correm risco de vida -, o caso dele, com todo o perigo e... A
operação obteve êxito.
-
Puxa vida! Mentiram a mim todavia; sou baixo e feio... E... Por favor, dona leitora, conheces alguma dieta eficiente que me faça perder muito peso?
Assim
foi. Tudo apresentou-se ao novo iluminado. Pois, ora, de repente, o mundo de
Simão criou cores, nuances, contrastes, tez mais reais e menos imaginárias, enfim, tudo
havia se transformado de morto em vivo a ele. E o homem foi outro dali por
diante. Alegre, expansivo, sorridente. Casou-se, teve filhos. O escritor Simão
Almeida conheceu, pela primeira vez, a felicidade dada aos homens, seres virtuosos
e místicos; porém, como a dona leitora bem percebe, este escritor encontrou sua
luz; sim! Mas o mundo, ora, este permanece escuro. De modo que Simão jamais
repetiu seus brilhantes escritos, jamais conseguir escrever algo tão magnífico como
“A Memória da Luz”. Custa-me dizer, mas digo, ele recebeu má crítica em
seus escritos depois que começou a enxergar com os olhos. Mas se digo é por
que é verdade, e a bem-aventurança concordou com tal condenação.
Por
Ricardo Novais